Buba
18 fevereiro 2004
  Um homem culto e viajado contava-me que quando uma vez, na Alemanha, foi assistir a um concerto, logo no seu início, rompendo brutalmente o silêncio, soaram as quatro notas iniciais da 5ª Sinfonia de Beethoven, ao pé dele, sentada ao lado da mãe, uma criança gritou, agarrando-se a ela: “mãe!.. tenho medo!”…

Fui ao cinema ver um filme sobre crianças intitulado Être et Avoir, a que o Ivan já se tinha referido na Praia e me tinha pessoalmente recomendado.
O que vi - filme ou documentário - foi uma tentativa de abordagem - embora razoável - demasiado esquemática e manifestamente redutora de um tema profundamente humano: a própria Humanidade quando ainda em estado puro: as crianças. Com a nota singular de, na fotografia, ter sido utilizada uma técnica de alta qualidade a servir um sentido estético e uma sensibilidade excepcional, que conseguiu, por vezes, que eu sentisse como se a câmara de filmar, na penumbra cúmplice da sala, tivesse vindo encontrar-se a sós comigo e me mostrasse, confidencialmente - só a mim - a expressão pura da beleza e da inocência...
O filme termina quando, precisamente, começa para as crianças o despontar da juventude que é o primeiro grande vendaval da vida…vendaval que, à medida que vem vindo, quase sempre destroça e muda tudo, abrindo a cada ser humano os caminhos do futuro, em direcção ao desconhecido… ao ritmo dos quatro acordes - as 4 fases da vida -, vindos do Céu ou do Inferno, da 5ª Sinfonia de Beethoven.
…Ainda quase uma criança, li um livro que o meu pai deu, escrito por Francisco Ferrer que, quando foi fuzilado, em Montjuique, evocou - no grito de morte com que acompanhou as detonações das espingardas - algo que tem a ver com o que, julgo, se pretende dizer no filme... Foi dessa leitura, julgo eu, que terá nascido, em mim, um sonho que a vida me não deixou realizar…
Recordei tudo isso ao ver, na cena final, as expressões, ainda puras, dos olhos das crianças; quando, já sozinhas, deixam a Escola, rumo à Vida e ao Desconhecido… e a expressão angustiada dos olhos do professor ao vê-las ir… E a ver também - só eu -, sobreposta, a expressão dos olhos, em lágrimas, do professor que nunca pude ser.
Levantei-me, e com dificuldade, fui-me aproximando da saída: como se tivesse acabado de assistir a uma missa por alma de um ente querido - o meu sonho - perdido para sempre.
 
07 fevereiro 2004
  O Buba O Buba, meu companheiro e titular do blog, é talvez, de todos os meus amigos, o que melhor me conhece e sabe adaptar-se à minha personalidade. Quando saio e não vai comigo, costumo trazer-lhe um bolo. Quando regresso, salta por mim acima e os seus olhos – que falam uma linguagem clara e extraordinariamente expressiva - perguntam-me: onde está o meu bolo? E se me esqueci de o trazer eu vejo como ele fica desapontado. Os seus saltos tornam-se imperceptivelmente menos vigorosos e menos exuberante a alegria dos seus olhos, embaciados pelo desapontamento; mas disfarça e continua a festejar-me, como que a dizer-me - e eu sinto que é verdade - que não me recrimina... que... tudo bem, não se fala mais nisso; ele nunca poria a hipótese de ficar zangado comigo porque eu me esqueci dele - e da nossa amizade - a benefício de outro qualquer motivo talvez até menos importante. Não. O Buba que, para além de meu sócio, já é quase tão meu como da minha filha Rosário, sabe que a medida da amizade por ele não pode ser aferida desse modo. E quando pouso a tralha que trago nas mãos e me deixo cair em qualquer coisa que possa suportar o meu peso morto, ele deita-se também no chão, ao meu lado, o focinho entre as patas a olhar-me tranquilamente, oscilando ligeiramente a cauda, em sinal do prazer que lhe dá a minha companhia e a certeza da minha amizade...
E, como quase sempre, quando rasgo o papel e, antes de lhe dar o bolo, começo a parti-lo em pedaços, vou-lhe afagando as orelhas, ele encosta a cabeça à minha perna, como que sentindo - sinto que ele sente -, mais intensamente que o antecipado prazer de comer o bolo, a certeza da amizade que a carícia lhe dá.
E, se a seguir a dar-lhe um pedaço do bolo, lhe digo, por pura e inexplicável malvadez - “acabou, não há mais. Vá-se embora!” -, ele vai. Cabeça baixa. Sem contestar... Mas chega adiante, eu sei, ele vai parar. E vai voltar a cabeça lentamente. E fica ali. Quieto, expectante… porque - conhecendo-me bem e as minhas excentricidades idiotas - ele sabe que pode acontecer (e acontece sempre) que eu diga: “Buba, anda cá!” E ele vem, rápido. E eu, rapidamente também, dou-lhe o resto do bolo. Que ele sabia que eu não lhe tinha dado, não sabia porquê, mas que sabia eu ia dar-lhe quando recobrasse a lucidez...
E se acontecer quando, depois de voltar a chamá-lo, no mesmo instante, me esquecer dele e de lhe dar o resto do bolo (o que também já tem acontecido), ele compreende e perdoa-me - com a resignada compreensão e tolerância de que só o Buba é capaz -, deita-se novamente a meus pés, olhando-me pura e simplesmente sem me recriminar, sem se mostrar ofendido, como se tudo se tivesse passado normalmente… Sem me dar a perceber que bem percebe o meu “estado” e talvez a pensar: “este gajo nunca foi muito bom da cabeça. Mas, agora, com a idade, está a piorar”.
Um destes dias sentei-me na varanda como de costume e peguei o jornal. E sem causa, repentinamente, senti-me mal: o ar começou a faltar-me e sentia uma pressão enorme sobre o peito; talvez prenúncio de qualquer coisa grave, talvez o derradeiro enfarte…
Sem que eu saiba como, o Buba apercebeu-se da situação e, sem que nada o possa explicar, começou a ganir como que a gritar, em surdina e aflito, a tremer, veio rapidamente para junto de mim a esfregar-me o focinho no peito, a lamber-me as mãos e a cara, na mais viva aflição, como que entre o medo de me perder e a impotência de não saber como ajudar-me.
Lentamente a crise foi passando, e o Buba acalmou também…
Depois deitou-se ao pé de mim. E de focinho pousado entre as patas dianteiras ficou a olhar-me discreta mas atentamente, vigilante, como a interrogar-se sobre se seria prudente voltar a adormecer sem ter a certeza absoluta de que eu de facto já estava bem.
O Buba porém, não é nenhum santo: é mesmo um bocado reguila, e quando lhe digo que tem que fazer qualquer coisa que não lhe agrada – por exemplo ir para outra sala -rosna, protesta, embora, contrariado e de má vontade, lá vá… é o que acontece quando a Rita e o Dinis, os meus bisnetos, vêm passar a tarde a minha casa. É em alturas dessas que o Buba, quando o mando embora - porque o Dinis ganhou-lhe medo -, se sente preterido, se chateia e rosna em surdina, protestando. E julgo que serão não só ciúmes (e com razões para os ter) mas, sobretudo, o sentir-se desconsiderado. E aqui, também o Buba tem razão, reconheço…É que ninguém gosta de ser tratado como um Cão… 
01 fevereiro 2004
  Não é humor negro. É desgosto, protesto e indignação. A espaços ligo a TV e vejo, perplexo, que continuam obsessivamente a transmitir imagens da queda e dos socorros de emergência prestados ao jogador. Vejo também que é geral a consternação e evidente o desespero de alguns perante a morte inesperada.
Eu próprio, como toda a gente, julgo, fiquei chocado e também, ao vê-lo cair, me pus de pé, quase instantaneamente, como se me tivesse lembrado, de repente, de que tinha que ir a algum lado com urgência.
Mas não, não fui a lado nenhum. Voltei a sentar-me, meio aparvalhado e a tentar perceber se o que estava a ver caído no chão era já um cadáver ou um jogador de futebol a jogar ainda um último desafio entre a vida e a morte …
Pressenti que ia perder... podia ter ganho. O futebol é isso mesmo, tal como a vida. Só que, para ele, o jogo acabou mais cedo do que estava previsto. Foi castigado com um amarelo… mas, logo de seguida, foi «expulso» do relvado, levado para fora do campo e irradiado, sem apelo, da prática do desporto. E tudo sem que alguém ou o próprio árbitro se tivesse apercebido do porquê ou de quem partiu a decisão de mostrar o vermelho.
Entretanto, para mim - e para além das dúvidas sobre os insondáveis mistérios da vida e da morte que usualmente a todos assaltam nestas circunstâncias - outras dúvidas e outros mistérios se me puseram que, entretanto, também não pude decifrar. E desde logo o porquê da projecção das imagens da queda durante horas e horas - em repetição sádica, compulsiva, e tratando a notícia da morte trágica e repentina de um jovem atleta, na força da vida, como se fosse a promoção de um «produto» ou da banha da cobra numa feira. E como se também o público, no estádio ou em casa, fosse constituído só por idiotas e atrasados mentais e, por isso mesmo, também não merecesse mais.
Por outro lado, e por ser verdade, devo confessar que, tendo compreendido a consternação - que eu próprio senti - de milhares de pessoas perante o sucedido, já me custa perceber a razão de tão enfático exercício colectivo (mediático-masoquista) que terá levado tanta gente a permanecer, sem arredar pé, horas e horas à chuva – mesmo quando já não estava a aguardar saber coisa nenhuma…
E teria gostado de saber – se tal fosse possível (e não é) - qual a situação profissional de cada um dos milhares de «figurantes» ali à chuva, não já certamente em razão da mágoa sentida, mas talvez e tão somente porque não tinham mesmo mais nada que fazer, talvez quem sabe porque muitos deles estivessem desempregados (e alguns, talvez, até com fome) e alguns outros, mais espertos, ou com mais sorte, de baixa por doença com atestado falso, a receber subsídio pela Caixa.
E, porque não pude encontrar respostas convincentes a tais dúvidas, pus-me, já em desespero, a escogitar a hipótese absurda de saber se o ajuntamento não seria (e apesar dos semblantes fechados e dos abraços «pró-forma») muito simplesmente uma manifestação de íntima alegria (embora disfarçada de tristeza) de adeptos e dirigentes de clubes rivais, por ter morrido um jogador adversário.
Explicado assim, já se entenderia o esforço e sacrifício enormes que fizeram, esperando a pé firme, estoicamente, horas e horas, indiferentes ao mau tempo, ao cansaço, à fome, e por fim até à pressão impaciente da polícia, na esperança de que pudesse ainda acontecer o milagre de morrer mais algum…
Miklos Fehér não merecia o espectáculo vergonhoso e degradante a que o país assistiu… merecia pelo menos mais respeito. Já morto, exposto indefeso ao massacre dos disparos das máquinas fotográficas e do adejar voraz das câmaras da TV, não teve ninguém – sobretudo da parte do Benfica - que tivesse vindo à estacada ou que levantasse um dedo sequer na defesa do seu direito (mesmo depois de morto) de não ser exposto, exibido na praça pública como o eram antigamente os criminosos justiçados. Ou os escravos gladiadores, vencidos e mortos no Circo, em Roma, no tempo de Nero.
Em preito de admiração, desgosto e amizade, alguns amigos e companheiros do malogrado jovem, levando nas mãos ramos de flores, fizeram um cordão à sua volta.
Em contraponto, os media organizaram, sem respeito por nada e por ninguém, um show macabro como um bando de abutres, voando à volta do cadáver, segurando nas garras aduncas e aceradas as caixas registadoras dos euros, das audiências e dos novos anunciantes.
É isto - esta vergonha - que, no Portugal Democrático e Estado de Direito, a Comunicação Social entende ser o direito de informar?
Entretanto os nossos brilhantes responsáveis políticos das áreas governamentais - aves canoras de variegadas plumagens como lhes chamava Albino dos Reis - aceitam todos, tranquilamente, que continue impunemente, pela Comunicação Social, a exposição e a devassa, imoral e despudorada, da intimidade das pessoas - sem sequer respeitar a morte, como aconteceu agora - como não respeita a honra e o bom nome de ninguém - como aconteceu, antes, com o próprio supremo magistrado da Nação, a benefício, sobretudo, do sensacionalismo e da sofreguidão mediático-monetária. E que, a continuar assim, corre sério risco - corremos todos – de, por culpa de quem pode e deve governar honestamente e não o faz, provocar que a História se repita e Portugal volte a ser amordaçado.

O senhor é maluquinho? Uma das pessoas de mais elevada craveira intelectual que conheci, em toda a minha vida, foi o Professor Bissaya Barreto.
Formou-se, no mesmo ano, em três Faculdades diferentes e em qualquer delas com 20 valores. Na cerimónia anual da entrega dos prémios aos alunos mais bem classificados, sentado num banco da fila da frente, ouviu - como era da praxe e para que fosse receber os prémios que lhe tinham sido atribuídos - ser anunciado, em voz alta, o seu nome com a indicação das Faculdades e da classificação final. Por nove vezes (três por cada Faculdade), ecoou no sala dos actos grandes, no meio de profundo e solene silêncio, o nome de Fernando Bissaya Barreto Rosa. Olhado por todos, incluindo Sua Majestade que aguardava, de pé, o jovem Bissaya para lhe fazer pessoalmente a entrega dos prémios, permaneceu sentado, imperturbável como se o que se passava nada tivesse a ver com ele. Tudo por uma razão simples: é que o jovem laureado era republicano e recusava-se, por isso, a receber os prémios e as insígnias das mãos do Rei de Portugal.
Na altura em que o conheci, em Coimbra, em 1952, era eu um modestíssimo funcionário administrativo. Tinha despacho com ele, no hospital, quando terminava a consulta, quase sempre depois da meia noite e, apesar de irascível no trato (e exigentíssimo em questões de serviço), depois duma escaramuça inicial nasceu entre nós uma relação de mútuo respeito, estável e amistosa.
Politicamente poderoso, nunca lhe pedi nada, e para além de alguns livros que me ofereceu mais tarde, nada mais me deu e eu, por minha parte, também nunca lhe dei nada. Tendo eu saído de Coimbra em 1955 encontrámo-nos ainda, durante vários anos em Lisboa, onde ele vinha normalmente aos sábados para almoçar com Salazar. E, durante muito tempo, fui assim continuando a saber dos seus projectos, dos seus sonhos (que eram sobretudo a defesa das crianças pobres) e das dificuldades burocráticas que tinha, por vezes, de vencer sozinho - porque tinha muitos inimigos -, sem nunca, que eu saiba, ter pedido ajuda ao amigo que, como é óbvio, facilmente lhas poderia remover.
Vem esta introdução para contar que, apesar de saber o que arriscava, uma vez o afrontei e com certa firmeza, recusando-me a cumprir uma ordem sua. E, quando esperava coice forte (e ele não se ensaiava nada para arrumar de vez quem o contrariasse: o Mário Braga pode confirmá-lo), olhou para mim, quase com ternura e disse simplesmente: - «O senhor é maluquinho»?
Vim a saber mais tarde que a posição que defendi, contrariando-o (e correndo com isso, julgava eu, sérios riscos), era, afinal, precisamente o que ele pensava ser, no caso, a posição séria e correcta, embora tivesse defendido, na discussão comigo e com a habitual dureza, precisamente o contrário.
Lembrei-me disto hoje - a propósito do comportamento da Comunicação Social e dos apelos do Presidente da República, que, para além de jurista excelente, todos sabemos ser um homem honestíssimo e pessoa de bem.
Devo esclarecer que não o conheço sequer pessoalmente.
Mas, quanto aos apelos que tem feito como quem prega no deserto, apelando ingenuamente à contenção, ao bom senso e à honestidade de quem não sabe o que isso é, recordo o que uma vez me disse, como acima contei, o Professor Bissaya e oiço-me, mentalmente, a perguntar-lhe também: - «O senhor é maluquinho?”
Senhor Dr. Jorge Sampaio: Permita-me que tome a liberdade, justificada pela responsabilidade de, como cidadão eleitor, ter votado em si, dizer-lhe o seguinte: a hora grave que o País atravessa não é de comentários nem de consensos ou apelos. Embora sem violência – que é a denegação da Democracia -, a situação politica a que se chegou exige que alguém com legitimidade se imponha e redefina regras, com autoridade e com firmeza: freio, bridão e rédea curta. E esporas de cinco bicos se for preciso… antes que a besta tome o freio nos dentes…
O senhor foi eleito, e aceitou ser, o Presidente da República. Confio em que continuará a honrar o seu compromisso de representar Portugal, fazer cumprir a Lei e defender, com determinação, a Liberdade. Só isso. 
salvadorprata@netcabo.pt

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