Buba
23 outubro 2004
  Excogitações privadas sobre a arte de ocultar dos outros os nossos sentimentos, avacalhar a verdade a benefício de ser bem comportadinho, ou seja, ser, em suma, como eu, o que se chama em português um grande filho da puta

Tenho andado mal disposto. Por causa do barulho. É horrível, nem ao fim de semana consigo - já não falo na rua – mas que dentro da minha casa haja um pouco de silêncio:
Os gajos da firma multinacional que ocupam há anos as lojas do prédio onde vivo mudaram de gerência. Resultado: entre as três e as cinco ou seis da manhã, quando me deito, o bater surdo e compassado dum motor qualquer, que eu julgo será o ar condicionado, impede-me de adormecer.
A isto acresce que quase diariamente, a qualquer hora - e não raro às dez ou onze da noite, incluindo sábados e domingos -, tenho que suportar o sonido forte do bater repetido de escalas, no piano do andar de baixo, no espaço correspondente à sala onde trabalho. É de ficar louco de raiva. Impotente. Odeio o barulho, qualquer barulho, ainda quando seja de notas soltas do bater de teclas de piano.

Vinha do largo, a caminho de casa. Parei junto à banca dos jornais (como faço sempre, compulsivamente, quando passo junto de qualquer banca, quiosque ou chafarica onde existam jornais, livros ou revistas) a descansar os olhos, fatigados, deixando-os ir em liberdade, como que varrendo branda, docemente, os títulos dos jornais, bons, maus, horrorosos, revistas mais ou menos aceitáveis e verdadeiras merdas - mas que os meus olhos gostam de ir acariciando, quase com ternura, quase com paixão, não como se fossem seios, nádegas, sexo, olhos, lábios, cabelos, de mulheres, mas antes dorsos, ventres, barbatanas, de sereias, todos os dias diferentes mas atraindo-me sempre da mesma maneira, pela ilusão de que um dia irá talvez acontecer não sei o quê, sem que seja capaz de resistir a olhá-los, a mexer-lhes.
E enquanto um destes dias, como de costume, assim me ia indo ao longo da banca, alheado no feitiço, esbarrei a certa altura com dois miúdos a manusear uma revista: ele talvez com sete ou oito anos, e ela talvez também ainda não tivesse onze. E - há encontros assim - são estes dois entes amorosos meus vizinhos, os comprovados autores do meu desassossego, pelo «barulho» que provocam a bater escalas intermináveis, que o pai - que ao que consta é professor de música - os obriga a martelar no teclado.
Surpreendidos, eu e eles, perguntei-lhes amigavelmente: «então como vão as vossas aulas de piano?»
Os miúdos suspenderam o exame da revista e olharam para mim, sorridentes: eles conhecem-me e sabem que sou o vizinho do andar de cima. A miúda, acanhada, disse: «vão bem»… Tinham ambos nos olhos uma expressão tão limpa, tão pura, que pensei nos meus netos quando tinham a mesma idade e tinham também lições de piano por iniciativa duma santa mulher, a avó paterna, infelizmente já falecida e infelizmente também com resultados de volume inverso ao dos desejos dela… Enterneci-me, esqueci os jornais e comecei a contar aos miúdos, como se fossem meus netos, um episódio da minha vida, mais ou menos assim:

“Quando eu era rapaz e um pouco mais velho que vocês - andava pelos meus dezoito ou dezanove anos - tinha um grupo de amigos, seis ou sete, todos ingleses e todos mais velhos do que eu, na casa dos trinta, com os quais regularmente costumava juntar-me. Um fim de semana, aconteceu irmos almoçar a um hotel no Largo do Camões, onde um deles, o John Almond - entre todos o meu mais antigo e melhor amigo -, estava hospedado. Já no hall de entrada, quando parámos a combinar para onde iríamos de seguida passar o resto da tarde, um deles, o Richard, afastou-se e, enquanto resolvíamos, sentou-se ao piano que existia no hall e começou a tocar. Fomo-nos chegando até junto dele, e um a um foram-se revesando e tocando também. E, quando todos já tinham tocado, o Allen Francis virou-se para mim e disse-me: «é a tua vez». Olhei para ele e disse-lhe: «eu não sei tocar».
O olhar do Francis disse-me: «sorry», e os dos outros meus amigos, impávidos, inexpressivos mas que eu «vi», incrédulos e como que a perguntar: «como é possível?», fizeram-me sentir uma das maiores vergonhas da minha vida...”

…Os miúdos meus vizinhos - são alemães - ouviram a história, quietos, a olhar para mim sem dizerem nada, com uma expressão vagamente surpresa, semelhante à dos meus amigos ingleses há 60 e tal anos.
Ainda assim, exortei-os, com entusiasmo meio, ou mesmo totalmente, estúpido: «estudem, pratiquem muito… Saber ler música e tocar vai servir-vos para mais tarde não terem que passar pela vergonha que eu passei…»
Sobre a minha prédica parva e paternalista, recordatória do vexame que sofri por aos 18 anos não saber tocar piano, não sei o que terão pensado os miúdos.
Em contrapartida, o que sei é que algumas horas depois, já em casa, a trabalhar, aconteceu - por volta das dez da noite - ter recomeçado, no andar de baixo, o maldito barulho das teclas do piano a bater as escalas de notas, como de costume…
…«Filhos da puta» - desabafei - «não vir um raio que os partisse a todos: aos miúdos, ao piano e ao cabrão do pai»…
Ao outro dia, ao sair o elevador, deparei com o professor que, sem mais aquelas, disparou: «o vizinho consegue dormir com o barulho das máquinas do ar condicionado?» «Não, não consigo», respondi. «Temos que fazer alguma coisa», disse ele, com ar decidido, enquanto ia entrando no elevador. Limitei-me a dizer que sim com a cabeça. E, bem à portuguesa - e ainda a olhar a porta já fechada -, a remorder entre dentes: «filho da puta».
E só então me apercebi que me estava a dirigir à minha própria imagem que o espelho da porta do elevador reflectia… 
06 outubro 2004
  Intermezzo III

Ary,
não vou fazer aqui, como tentei fazer nos Intermezzos anteriores, a minha própria leitura da tua poesia, tentando ao mesmo tempo deixá-la pura e igual a si mesma. O que vou tentar fazer agora - e não sei sequer se me darias ou dás o direito de o fazer - é dizer as palavras que eu penso que dirias, se as pudesses dizer.
Ary, lembras-te do Árias? Aquele gajo teu amigo, meu amigo de sempre e amigo da Lalande, que recitava o Régio como ninguém? Foi para o Brasil há anos. Sabes se ainda lá está, se está noutro sítio ou se já morreu? Tu sabes como gostávamos de ti, mesmo quando te caluniavam e davam pontapés.
Viste hoje o jornal? Fiquei de boca aberta. O Sampaio quis dar-te uma condecoração: catalogar-te numa Ordem, Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Como se tu fosses gajo para andar às ordens fosse de quem fosse. Tu que foste sempre livre como um cão vadio, sem coleira e sem dono. Como se alguma vez fosses capaz de subordinar-te a outra Ordem que não fosse a Ordem da Liberdade como tu a entendias.
Enterrado, embora vivo, estás impedido de te defenderes. Mas eu estou aqui. Conta comigo. E como teu amigo, e comungando do teu ideal de Liberdade, permite-me que te represente junto do nosso excelente, generoso e bem intencionado Presidente da República, e que no teu e no meu próprio nome lhe diga, salvo o devido respeito, que vá bardamerda e que, quanto à condecoração, lhe agradeça também muito a intenção mas, fazendo minhas as tuas palavras, que meta a condecoração no cu. Achas bem? 
salvadorprata@netcabo.pt

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