O DUCHEAquele ruído… De chuva forte. A cair no estrado de madeira e sobre o chão de cimento... monótono, monocórdico. E, talvez ainda e sobretudo, vagamente agressivo, ameaçador… Ao centro do balneário, uma espécie de palanque, de madeira qual torre de vigia de prisão de alta segurança… Lá em cima, um homem segurava nas mãos, duas agulhetas… Que, como se fossem armas de guerra, crepitavam em simultâneo ou alternadamente, jactos de água – quente e fria.
À volta, em semi-círculo, nas cabinas, com portas numeradas, os banhistas, na maioria doentes, mais ou menos idosos, aguardam, como touros nos curros, que as portas se abram e comece a lide do duche escocês...
Uma pancada leve na porta e uma voz avisa-me:
"o senhor doutor, quando quiser, pode entrar". Entro de seguida e os jactos começam a fustigar-me moderadamente os pés, as pernas, as costas, o peito...
Entretanto, passa um minuto ou dois e a voz do homem da agulheta vem em tom suave: "pode virar...". E eu viro. "De lado. De frente. Novamente de lado. De costas"... Macia, a voz continua, mais um pedido que uma ordem: "pode virar!"... "pode virar!"... Passam dez, quinze minutos...
Cala-se finalmente o som do que pareciam bátegas fortes de chuva a cair no estrado de madeira sobre o chão de cimento. "Muito obrigado" diz, servil, o homem da agulheta.
Depois, sentei-me numa cadeira a repousar já na cabina, a porta aberta, continuando a ver o que se passava no balneário:
Trôpego, inseguro, avançou um velho. Não era difícil ver que era de condição humilde: o rosto e as mãos tisnadas pelo sol, do sol a sol: provavelmente um rural da região a quem, os trabalhos do campo, uma vida inteira, sem resguardo do frio e da chuva, anquilosaram.
Das duas agulhetas, a água recomeça a jorrar: quente, fria...
A voz do homem, agora autoritária, vagamente hostil, impaciente comanda: "de lado!"... "de costas"!... "Vira!...", "Vira!..."
Agarrado ao varão de apoio o velho encolhe-se, fustigado pelas agulhas do jacto forte a furar-lhe as dobras da pele, vazias de carnes, a moer-lhe os ossos...
"cabrão filho da puta… pensei.
Sádico, o homem das agulhetas continuava: “Vira! Vira!”
…agarrado ao varão o velho não virou mais. Tinha chegado ao limite. O homem da agulheta rodou os manípulos e veio o silêncio.
O velho ficou ainda algum tempo dobrado sobre o varão... Por fim, endireitou-se, olhou, de frente, o homem da agulheta e murmurou: “muito obrigado”...
E foi andando, de regresso à cabina, mais trôpego… e ia jurar, mais doente, mais velho, do que antes do “tratamento”…
Virando-se de novo para as cabinas, o homem das agulhetas voltou a gritar: "Outro"...
Com dificuldade, vesti-me e saí.
Já no parque, sentei-me num banco, exausto… e, como que, vagamente angustiado…
Fechei os olhos, mas continuava a ver e a ouvir – não conseguia libertar-me – da imagem do velho agarrado ao varão e da voz autoritária do homem: “Vira!... Vira!...”
E, sobretudo, não conseguia libertar-me da dúvida de saber qual de nós dois: o homem da agulheta ou eu – que não fui capaz de socorrer o velho quando estava a ser fustigado – seria o mais perverso, o mais malvado …Que o mais cobarde, o mais nojento dos dois, eu sabia quem era…
Outono dentro… das árvores, soltavam-se folhas que iam caindo à minha volta e sobre mim, em sussurros murmurados, – que só eu ouvia –… tentando consolar-me.