Inês: Li o teu
post sobre o Collin Farell. Fizeste-me voltar aos 20 e tal anos, quando estava a fazer a tropa em Cavalaria 2. Um “personagem” famoso entre nós, nesse tempo, era o “Quarenta”, garanhão da Guarda Republicana cujo “aparato” tinha, de comprimento, quarenta centímetros, fora a cabeça; e era sempre citado, com o respeito devido, pelo capitão Aguiar nas aulas de Hipologia.
Que “os homens não se medem aos palmos” dizem normalmente os menos “abonados”, sendo certo que outro ditado também diz que “cada um, até onde chega, não é curto”...
Malgré todos os ditados, e digam o que disserem, a verdade é que o que é bom é para se ver. Por isso te louvo o desassombro quando dizes, no teu
post, da tua oposição ao lápis azul com o qual cortaram a cena do primeiro nu frontal do Farrell. Deixa lá: pior teria sido se lhe tivessem cortado o próprio “aparato”.
Para te compensar, na medida do possível, do efeito censor do púdico lápis azul, deixo-te, lá em cima, a ¾, a fotografia do teu amigo do
Buba quando ainda era vivo e ensinava aos soldados, no Guincho, não a arte de cavalgar toda a sela, como ensinaria D. Duarte, mas a arte de montar, em pêlo, a galope e à rédea solta, o cavalo da ilusão,
con las clinas soltas al viento, como diria o Ortega.
Um beijinho para ti pela ajuda que deste ao Buba. Foi uma avalanche de visitas. Depois caiu na rotina: os dois ou três do costume como quem vai ao cemitério mudar a água à flor. Uma tristeza...
As eleições, o footbal e a fome das crianças
No domingo, dia 13 do corrente, realizaram-se, em Portugal, as eleições de deputados para o Parlamento Europeu. Os portugueses optaram, em grande maioria, pela abstenção.
No mesmo dia, na sequência da iniciativa tomada no ano 2000 em dez países asiáticos, cerca de mil pessoas em Lisboa e quinhentas na Horta, na Ilha do Faial, à semelhança de cidadãos de outros 64 países, participaram numa marcha para angariação de fundos e sua ulterior entrega ao World Food Program das Nações Unidas, para ajudar a matar a fome a 30 mil crianças em todo o mundo.
Cerca de dez dias mais tarde, também em Lisboa, jogou-se o Portugal-Inglaterra, a que talvez mais de três dezenas de milhar de portugueses assistiram “de visu” no próprio estádio e centenas de milhares pela TV, seguindo apaixonadamente, durante quase três horas, as peripécias dramáticas do jogo, e caindo, por fim, em êxtase colectivo com uma vitória que justificou para alguns o pagamento de 400 contos por um bilhete na candonga, no Rossio; muitos milhares de contos aos jogadores, para além de 15 000 contos mensais durante dois anos a Scolari.
Todos os presidentes de qualquer coisa deste país, desde o Presidente da República propriamente dita ao da Assembleia da dita, aos presidentes dos Partidos, aos mais variados abundantes e sortidos presidentes pura e simplesmente, assistiram emocionados, à vitória, vibrando de patriotismo e cantando no final, para gáudio do mundo inteiro, a letra incrível e hilariante do chamado hino nacional ainda em vigor.
Entretanto, milhares e milhares de crianças dos bairros degradados, sobretudo da cintura de Lisboa e do Porto, em número sempre crescente e alarmante, definham ou morrem mesmo de fome, sem terem quem lhes dê um copo de leite, uma migalha de pão.
Impunemente, Bush e Sharon mandam lançar bombas onde calha, sem poupar as crianças. Assassinos, eles? E nós, os felizes e orgulhosos vencedores do Portugal-Inglaterra, o que somos? No fundo, não serão aqueles assassinos mais humanos, matando as crianças rapidamente à bomba, do que nós, os que idolatramos os jogadores da bola, deixando-as morrer de fome, lentamente, a nosso lado, fingindo que não sabemos que existem ou que o problema não é nosso?
Abril venceu. O povo é quem mais ordena. Caíram ou perderam importância politica dois dos FF de que o Fascismo se serviu: Fado e Fátima; mas o F do Footbal - transformado em arma de destruição maciça nas lutas politicas entre os Partidos - não só resistiu como se desenvolveu e alastrou como um cancro, contaminando e corroendo mortalmente todo o tecido social E sobre o footbal - embora metendo a foice em seara alheia e com a consciência da minha profunda ignorância - diria ainda que a sua importância nas relações de poder e contra-poder, dentro de cada país, terá sido talvez em alguns casos, indirectamente, elemento fundamental nas Relações Internacionais.
Dito isto, direi ainda que vibrei, como toda a gente, com a vitória dos jogadores portugueses sobre a nossa sempre leal e fraterna aliada, a Inglaterra, que adoro desde quando ainda miúdo meu pai me deu a ler um livro, de um autor cujo nome não recordo, que se chamava
A Aliança que esmaga. Li nele entre outras histórias a do ultimato e do mapa cor de rosa. Fiquei inteirado.
Direi por último e para terminar que gostava de poder voltar a vibrar, quando – o que tenho como certo - conquistarmos o título de
campeões da Europa em futebol; e ainda mais intensamente se os portugueses, todos juntos, e com os nossos jogadores à frente, fossem capazes de organizar – à semelhança do que fizeram os dez países asiáticos - marchas até junto das crianças das barracas, matando-lhes a fome e conquistando também para os portugueses o título de
campeões da Europa contra a fome.
Última hora Sem que alguém o tivesse previsto, a TV acaba de noticiar quase como uma certeza a hipótese de Durão Barroso ocupar o lugar de Presidente da Comissão Europeia…
Daniel: Internamente o facto não tem qualquer relevância dado que, seja quem for que o substitua, ficamos rigorosamente na mesma… ou ainda pior. Tem calma. Vai pelo que te digo. Aguarda e antes do mais deixa ver como é que o Sampaio se desembrulha.
Pergunto-me porém - e isso parece-me, por ora, bem mais importante – o que é que os americanos terão tido a ver com tão estranha e inesperada decisão? um abraço.
Rás-Teparta
Meus queridos bisnetos:
1. Estava eu, tal como a linda Inês, posto em sossego, a tentar pôr em dia a vida do Buba (… dar os parabéns de aniversário ao
Eduardo pelos seus lúcidos e juvenis 50 anos; responder à Cláudia a explicar-lhe as razões por que recusei conceder-lhe a entrevista que, há largos meses, me pediu; agradecer à Inês do
Um Bigo Meu, ao José Costa do
Triste Sina, ao
My Moleskine, as suas generosas e amigas referências)… Mas, eis senão quando, aconteceu, como se alguém me tivesse dado, sem eu esperar, traiçoeiramente, uma patilhada nas partes pudendas. Eu conto: estava combinado que no passado dia 29 de Maio, nós, os pouco mais de meia-dúzia dos antigos Rases, iríamos a Aveiro comemorar o lançamento de um livro escrito pelo Mário Trepa, Rás-Mor no nosso tempo, sobre o que foi a nossa vida de estudantes em Coimbra, nos anos 40, na Real República da Rás-Teparta. E sobretudo a tentar dizer aos vindouros da importância que as Repúblicas e a nossa em particular tiveram para nós e para a nossa geração; ou pelo menos para grande parte dela...
Infelizmente, um problema inesperado impediu a minha deslocação, contratempo que, aliás, tentei colmatar mandando, por outro Rás, um escrito meu, redigido à pressa para ser lido no decorrer do acto, na altura própria. O que de facto aconteceu. Só que, só foi lida metade do escrito, tendo sido omitida a última parte. Fiquei chocado, e de tal modo que, por tabela, a feitura do
post para o Buba ficou em
stand-by: uma chatice...
Um destes dias, com mais calma, virei possivelmente contar-vos o que no episódio, e talvez sem razão, tanto me perturbou; e a que, julgo, quando daqui a alguns anos vocês perceberem o que foi, não darão ao assunto a menor importância e comentarão entre vocês: “o avô Salvador era mesmo um tipo muito complicado!” Logo se verá…
2. Entretanto, para intervalar e espairecer ideias, resolvi ir ao cinema ver
O Milagre Segundo Salomé do qual tinha tido notícia pelos olhos do Mexia na crónica de 5 de Junho na
Grande Reportagem do
DN. A curiosidade em ver o filme tinha sido acicatada pela descrição, rendida, que o Mexia faz dos olhos da rapariga e da verdade que ela, segundo ele, lhes imprime, num momento de transe.
Não consegui ver o que viram os olhos do Mexia. O que certamente se deve à minha falta de sensibilidade, falha agravada pela idade avançada que não me permitiu, sequer, que tivesse percebido a quase totalidade das falas dos personagens… que o Mexia, no caso da rapariga, atesta ser fala sussurrada e dicção preciosa; predicados e atributos que infelizmente não pude confirmar.
Por outro lado, e apesar da minha surdez acentuada, resisti com dificuldade aos decibéis da banda sonora, a denotar, só por si, e em meu entendimento, o nível da alarvice e de incompetência de quem a fez e que, neste caso sim, seguramente, justificava lhe fosse aplicada a norma do Direito Português que é motivo de orgulho nacional e que prevê a aplicação da prisão preventiva, se necessário por toda a vida, a qualquer cidadão que calhe. E tudo sem que o próprio “guantanamado”, os seus advogados, os magistrados, a Polícia, adivinhos, cartomantes, ou seja quem for, saiba porquê. É este, aliás, o único segredo de justiça que, entre nós, se mantém inviolável e conseguiu mesmo resistir ao poderoso lobby da TV.
Quanto ao resto e quanto a mim, o filme vem na linha clássica da produção nacional. De qualquer modo, porém e mesmo assim, merda por merda, prefiro o José do Telhado e o Pátio das Cantigas. São mais divertidos. Sem prejuízo de reconhecer que este filme, a certa altura, tem um momento alto: é quando a rapariga se dirige ao local onde vai aparecer aos pastorinhos. A imagem mostra um campo de oliveiras e uma encosta de fragas recobertas de fetos urzes, mato que o vento vai afagando levemente. O quadro e o silêncio absoluto que inesperadamente emerge são perfeitos e foi o único momento de verdadeiro cinema e de silêncio. E que, infelizmente, até ao final da fita nunca mais se repetiu. O quadro que refiro só foi manchado pela imagem insólita da rapariga, vestida de maneira que eu diria, no mínimo, ridícula, com uma capa do tipo frade Capucho e um capuz a tapar-lhe a cabeça.
Quando ela chega lá acima e faz a sua estranha aparição, os pastorinhos levantam-se e voltam-se todos de repente, olhando-a primeiro de frente, pondo depois os olhos no chão. Um deles, num gesto cheio de significado, tira o “barrete” e ajoelha. Outra ajoelha também e a outra - já mais velha e mais batida - mantem-se de pé, na retranca.
Nós, do que vimos da cena e sobretudo pela forma pronta e marcial como - quando mal a pressentiram - o pastorinho e as pastorinhas fizeram esquerda volver, íamos jurar que tinham sido instruídos previamente na manobra pelo militar putanheiro que aparece no filme, sempre fardado, com um dólmen de porteiro.
A rapariga, entretanto, estende-se no chão. E os pastorinhos – entretanto também – fogem espavoridos. Pudera! Milagre seria que, depois daquela fantochada toda, tivessem lá ficado. Nós próprios sentimos vontade de fugir.
Entretanto, passado o fanico, a rapariga recuperou. O militar, porém, num momento de lucidez, acaba por lhe dar um tiro. Comprendi-o, porque foi, por várias vezes durante a projecção do filme, o que também me apeteceu fazer-lhe…
É, porém, fora de dúvida – e aí o Mexia tem razão - que a rapariga tem covinhas na cara e tem olhos bonitos; mas quanto às aparições que o Mexia viu neles, eu confesso humildemente que não vi. E tive pena.
Quanto ao caso do orgasmo que o Mexia refere com tanto entusiasmo, eu pelo que vi - e embora, na área em exame, esteja retirado - acho que a mocinha com aquela cara, sem expressão, parada a sorrir estupidamente, a pôr em alvo o olho húmido… a tentar simular um orgasmo etéreo, seráfico, de sacristia, não convence ninguém. E permita-me, Mexia, que lhe diga que neste aspecto da queca - como lhe chamam agora e no meu tempo se chamava berlaitada ou pirocada - acho que a sua vizinha do andar de cima, tal como você em tempos a descreveu, quando se estava a vir tinha outro desempenho: havia chiqueiro, havia cagaçal, havia verdade, porra! E repare: a sua vizinha nem sequer é puta, é uma amadora que faz uns biscates... Ao contrário da sua rapariga do pescoço caído que - tem que concordar - sendo uma profissional tem outras responsabilidades. Porra...
Mas em suma, adiante: eu quero que se lixe a rapariga. O que me deixa preocupado é você, Mexia (aquela do pescoço caído e, ainda por cima, para cima de nós…): um rapaz tão novo, tão inteligente, tão douto, com um futuro tão bonito… é uma porra!...
3. Entretanto, deu-se a morte do Sousa Franco. Fiquei perturbado. De seguida, virei dizer porquê.