Buba
30 dezembro 2004
  O Caga-milhões Contei há dias o episódio em que, ao descer o Vale Escuro, tive medo: aquele gajo na azinhaga, no meio do caminho, e a inevitabilidade de cruzar-me com ele, era lixado; porque, como vos contei, o caminho era muito estreito e, se o cabrão me empurrasse, eu ia parar à quinta do Joaquim «Tâmbra», a 6 metros lá em baixo. Por isso que o decidir-me a passar - ou não - ombro a ombro com o desconhecido fez-me lembrar César e o Rubicão.
Esse episódio, mal ou bem, lá passou. Muito embora tenha sido um mau bocado, que, apesar de curto, me pareceu a eternidade - e que deu para que eu, que me julgava um gajo destemido, as tivesse cortado como um capado.
Vem isto novamente ao recordar o que terá sido, até hoje, o maior susto que apanhei na minha vida. Tinha para aí oito ou nove anos, andava ainda na Primária e a cena passou-se com o Jaime, meu colega na Aurora Social.
O Jaime era muito meu amigo: quando eu estive doente e acamado quase um ano, ele ia à «xincha» sozinho, e depois vinha a minha casa repartir o que roubava: figos, pêras, romãs, cerejas, o que calhava. Fruta por vezes ainda muito verde que eu comia, o que com certeza ajudava a agravar o meu estado de saúde (o médico só permitia leite e caldos de galinha…). Mas a verdade é que só me sabiam bem as patuscadas às escondidas, de fruta verde, sem ser lavada, que o Jaime trazia das xinchadas.
Uma vez o Jaime também me deu uma prenda muito original e que fez a minha felicidade: foi aos pássaros («ao visco»: punha-se visco nos ramos das oliveiras e os passarinhos ficavam com as patitas coladas) e apanhou um que depois me levou. Agarrei nele muito docemente, para não o magoar, falei-lhe ao ouvido, muito baixinho, fiz-lhe festas na cabeça e no bico. E o passarinho gostou tanto (penso eu) que ficou mansinho… e passou a andar pelo quarto a saltitar. E por ali ficou, e nunca fugiu.
O pai do Jaime era dono de uma loja enorme, mesmo ao lado da escola, onde tinha instalado uma cocheira com uma grande quantidade de carroças e de animais para as puxar: sobretudo mulas, machos e cavalos, e muitos empregados para tratar dos animais, das limpezas e da condução das carroças.
Por isso, mesmo em frente da escola, no chão, eram só restos de palha, lixo e merda de cavalos. Era o nosso recreio. Era ali que brincávamos nos intervalos, e era porreiro. Para nós o lixo e a merda não eram problemas: lixo era ali e em todo o lado, e a merda ali era merda dos cavalos. Quem frequenta picadeiros sabe isso bem: é uma merda higiénica, liofilizada, não é como a dos humanos. A merda das pessoas é como a dos porcos, é nojenta e ressuma a essência da intrínseca natureza humana.
O pai do Jaime, o senhor Alberto, a falar, mesmo normalmente, atroava os ares, pois tinha um vozeirão. Era um homem violento e temido inclusive pelos carroceiros, que eram tratados por ele como cães, à porrada ou mesmo a chicote. Alardeava que tinha muito, muito dinheiro. Por isso mesmo, a malta chamava-lhe o «Caga-milhões».

A nossa professora, a «Cobeca» (era a alcunha que lhe tínhamos dado), acabado o tempo de aula, dera ordem de saída... Escadas abaixo, em corrida desaustinada, enquanto uns iam saíndo, outros iam ficando estatelados - eram dois lanços de escada muito empinados -, ou porque se desequilibravam ou porque eram empurrados.
Nesse dia, eu e o Jaime fomos, como normalmente, dos primeiros a chegar à rua, o nosso mundo. Começámos imediatamente a medir forças e a ensaiar lutas que tinham normalmente como tema - a partir do livro de História – as batalhas entre mouros e cristãos. Simulando os confrontos entre cavaleiros, montávamos em canas cujas folhas verdes eram as crinas dos cavalos.
Mas não havia guerra nem sequer animosidade; esmurrarmo-nos, agarrarmo-nos, atirarmo-nos ao chão era a forma que tínhamos de nos tratarmos como irmãos: e isso só acontecia entre os que se gostavam.
Naquele dia o Jaime fazia anos e o pai, o Caga-milhões, tinha-lhe dado como prenda uma mala nova. Era de cartão, forte e bonita. Tinha arabescos e um belo fecho de metal amarelo. Tinha também como pega uma correia de cabedal presa de cada um dos lados da mala, para que pudesse ser usada em bandoleira ou a tiracolo, um luxo… a marcar a diferença entre nós, filhos dos gajos mais abonados, que usávamos malas de cartão, e os mais desgraçados, que transportavam os livros e os cadernos em «malas» feitas com serapilheira de sacas de batatas.
Chegados à rua, a minha prenda de anos foi um empurrão - foram ele, a mala e o resto das merdas que trazia nas mãos, tudo para o chão. Primeiro round... Mas o Jaime não era gajo que se ficasse. Levantou-se num ápice e, agarrando na correia, volteou a mala por cima da cabeça como se fosse um lançador de martelo, pretendendo atingir-me com ela. Furtei-me ao golpe e o resultado da finta foi a mala ir bater com violência no chão, desfazendo-se em três ou quatro bocados, saltando os livros, os cadernos e tudo o mais que continha, cada coisa para seu lado.
Quando vimos aquilo, o Jaime não se conteve e começou a chorar - e eu não me senti melhor. É que quando a mala se desfez qualquer de nós instantaneamente viu que tínhamos um grande problema, que era explicar ao pai do Jaime como é que aquilo tinha acontecido. Instintivamente, aproximámo-nos e ficámos ora a olhar um para o outro, ora para os bocados da mala, sem atinarmos como íamos sair daquela. Às tantas, já tanto chorava ele como chorava eu. O Jaime olhava para mim, com os olhos dele a dizer-me: epá - e agora? O que é que eu vou fazer? Eu estava tão à rasca que nem era capaz de engolir, e o Jaime a chorar à minha frente, a pensar na carga de porrada que o Caga-milhões lhe ia dar.
Agarrei-me a ele e disse-lhe: epá, eu vou lá contigo. Tinha que ser: a mala tinha-se desfeito no chão porque eu me desviei, portanto eu também era culpado. Além disso não podia deixá-lo ir sozinho enfrentar o pai. Pus-lhe o braço à volta dos ombros e disse ao Jaime: vamos lá os dois falar com o gajo. E fomos.
A cocheira onde estava o Caga-milhões era mesmo ao lado. Entrámos e fomos andando pelo meio daquela cegada toda - cavalos, machos, carroças, carroceiros, arreios, fardos de palha, uma confusão dos diabos, e o Caga-milhões lá ao fundo. Fomo-nos aproximando e, já perto dele, a quatro ou cinco metros, o Jaime gritou: «ó pai!»… O Caga-milhões voltou-se, e olhou-nos surpreso, ao ver o Jaime com os bocados da mala e os livros, tudo misturado, debaixo do braço. O Caga-milhões era um homem esperto e vivido. Nós tínhamos parado e ele ficou também, por momentos, a tentar medir a situação. E logo a seguir, tenho a certeza, terá pensado: temos merda.
Depois avançou, devagar, sem dizer nada, em direcção a nós. E, à medida que avançava, eu ia ficando mais apavorado. O gajo era, de facto, um homem muito grande e feio; metia medo.
Aproximou-se lentamente e nós ficámos à espera, como se estivéssemos pregados no chão. Eu nunca tive tanto medo como nesse dia, à medida que o Caga-milhões se aproximava. O gajo era realmente muito grande… Só me fazia lembrar a estampa do meu livro que representava o Gigante Adamastor. Olhou para os dois, olhou para a mala em bocados e perguntou: o que é que aconteceu à mala? Eu enchi-me de coragem e disse em voz sumida: «estragou-se».
O Caga-milhões deu um berro tão grande que eu nem percebi o que ele disse. Lentamente, com os olhos que pareciam deitar chispas, começou a meter a mão ao bolso. Eu pensei (era óbvio) - este gajo vai dar cabo de mim. Julguei que ele ia tirar uma pistola e dar-me um tiro, que me ia matar. Mas aguentei, não fugi.
O gajo tirou a mão do bolso, escolheu qualquer coisa que meteu na minha mão - era uma nota de vinte escudos - e disse: «se se estragou, vão comprar outra.» Foi só o que o gajo disse.
Eu nem queria acreditar. Puxei pelo Jaime, que estava como que petrificado, e arrastei-o comigo, quase a correr, mas ainda a tempo de ouvir, atrás de nós, um berro atroador solto pelo Caga-milhões, a embrulhar uma última palavra: cabrões!... Foi a expressão mais terna e carinhosa que ele encontrou para nos abençoar, como se eu e o Jaime fossemos ambos seus filhos.

Os anos passaram e com eles muitas coisas também passaram e se perderam. Mas guardei sempre a memória do medo que senti quando ele meteu a mão no bolso e pensei, sinceramente, que era o fim da minha vida.
Guardei também no mais íntimo de mim a recordação do homem que, considerado o terror da «Quinta», era afinal um homem bom. E que, naqueles curtos e aterradores minutos, me deu uma lição que não esqueci mais: a de que uma das facetas de maior nobreza de carácter do homem é a tolerância.

O Jaime morreu muito novo: tinha os seus dezoito anos. Arranjou namoro com uma gaja da outra banda. A mãe da rapariga, que era um coirão, ficou delirante, porque o pai do Jaime tinha muito dinheiro – toda a gente sabia. Constou que a mãe da miúda lhe deu, misturado na comida, durante uma visita, um «filtro de amor», normalmente conhecido por «água do cu lavado», uma beberragem qualquer com afrodisíacos onde, antes de ser servida, a rapariga lavava o cu e a «passarinha». Ao que consta, o Jaime, sem suspeitar, bebeu a mixórdia e morreu envenenado. Foi o que constou.
Quando soube da morte do Jaime, pensei ir junto do Caga-milhões e dizer-lhe qualquer coisa, dar-lhe um abraço, uma merda assim. Mas não fui capaz. Não por ter medo do Caga-milhões (onde é que isso já ia…). Não fui ter com ele por mera cobardia: porque tive medo de não ser capaz de enfrentar a dor do Caga-milhões. O Jaime era o seu único filho. Medo de não aguentar a dor do homem que, quando eu era miúdo, me tinha tratado como se eu fosse também seu filho. Fui um merdas. Precisava dos cornos partidos. 
23 dezembro 2004
  Aborto e condição feminina (extraído da vida real) O advogado gesticulava, fazendo voltear as mangas da toga, e, a terminar, indicador em riste, apontava-o ao céu e depois à ré. Ela – dizia ele alto e bom som, puxando pelas cordas vocais:
- Ela, que aqui está, esmagada ao peso da vergonha, a responder por um crime que não é dela, mas dele que a desgraçou; que a usou como quem fuma um cigarro e deita depois fora a beata que esmaga com o tacão do sapato…
E o dedo apontava novamente a mulher.
O silêncio sucedeu à retórica: finalmente o advogado tinha-se calado.
O juiz, como se não o tivesse ouvido, continuava a fixar a mulher, amarfanhada no banco à sua frente.
Oh mulher! – disse ele por fim, quase em confidência – Como é que você, se sabia que ele, quando estava bêbado, lhe batia; e lhe tirava o dinheiro sabendo que você precisava dele para alimentar os filhos…
Porque é que você lhe abriu a porta e depois de tudo isso ainda se deixou novamente engravidar?
A mulher levantou para o juiz os olhos, pisados pelas pancadas e macerados pelo sofrimento. Depois deixou-os a vaguearem pela sala como que a procurar arranjar maneira de explicar ao juiz aquilo que ela sabia que ele nunca poderia entender porque ela a si mesma não era capaz de explicar.
Não sei, Senhor Doutor Juiz, não sei… A mulher é uma coisa fraca da cabeça... Ele não presta, é um desgraçado por causa do vinho, dá cabo do dinheiro que nos faz falta (ainda devo o desmancho à parteira) mas é o meu homem, não tenho outro. É como se fosse meu marido, estamos a pensar em casar… Eu não podia deixá-lo na rua, tinha que lhe abrir a porta.
Perdoe-me, senhor Juiz, não me mande para a cadeia: os meus filhos não têm mais ninguém… e o meu homem também não. Ele é bom homem, é meu amigo e amigo dos filhos… mas não temos dinheiro para deixar vir mais nenhum… e eu queria… eu gostava de ter pelo menos mais um…
O juiz ficou calado, a olhar a mulher. E talvez a pensar intimamente: maldito Código Penal, malditos políticos, maldito Papa, maldito Mundo…
Por fim ditou a sentença: vai condenada com a pena suspensa.
O advogado ouviu e pensou: não é fácil, ao homem, ser juiz neste tipo de questões: falta-lhe legitimidade. 
20 dezembro 2004
  Dois vezes nove Era um cair de tarde, já lusco-fusco. De regresso a casa, vindo do Gil já muito atrasado, sucedeu que ao chegar à entrada do «Vale Escuro», uma azinhaga estreita, de mau piso e mal afamada (por nela acontecerem assaltos frequentes), vi, especado no meio do caminho, um tipo qualquer com fraco aspecto (e que não vinha com certeza do Liceu…) e que, assim de repente, me pareceu talvez um marçano ajoujado ao peso do cabaz que tinha sobre o ombro… Parecia… mas, em boa verdade, eu não podia realmente adivinhar o que é que aquele desconhecido pretendia, ali parado no meio do caminho. Estando ainda a certa distância, queria-me parecer que, qualquer que fosse o motivo, o sujeito estava bastante agitado. Parecia contorcer-se…
Embora surpreendido, continuei a andar - talvez mais devagar - tentando aparentar naturalidade… O certo é que comecei a sentir medo e a pensar, de mim para comigo, que o mais seguro era voltar para trás, retroceder para a Penha de França, descer as escadinhas do Alto da Eira e, pronto, estava no «sítio». Quer dizer: pôr-me a mexer e deixar o gajo a dançar o fandango até lhe apetecer.
Mas, se isso era bom de pensar, não era fácil de fazer. Eu era um tipo «respeitado» na Azinhaga, tido como um gajo que não virava a cara ainda quando a situação não me era favorável. E, dentro deste quadro, voltar para trás não era pensável, não podia ser: tinha que continuar… estava encurralado dentro da minha própria imagem de tipo que os tinha no sítio…
Sem outra saída honrosa que não fosse enfrentar a situação, baixei-me, disfarçadamente, apanhei duas pedras do chão e continuei a caminhar «tranquilamente» ao encontro do desconhecido.
Só que – vi depois – o potencial assaltante que eu temi era um rapaz com os seus dezoito ou dezanove anos que, entretanto, ainda eu estava longe, começou a gritar, pedindo por amor de Deus que o ajudasse a pôr o cabaz no chão, porque sozinho não era capaz de o fazer. E, dizia ele, tinha necessidade urgente de se «aliviar» - «dar de corpo», na sua maneira de dizer, certamente com raízes na região onde nascera.
Já mais descontraído pelo quase cómico da situação e, sobretudo, por afinal não ter que enfrentar o problema sério que tinha imaginado, ajudei-o a pousar no chão o pesado cabaz e fiquei à espera…
Porém, à medida que o tempo passava e eu ali à espera que ele se despachasse, comecei a sentir-me incomodado, desconfortável, pelo que a situação tinha de insólito e até de ridículo – embora reconheça hoje que, pelos seus aspectos humanos, talvez tivesse sido, entre os episódios que ao longo da vida caldearam a minha personalidade, um dos que mais me deram a medida de mim mesmo, sobretudo da minha capacidade de suportar, sem ceder ao meu orgulho, situações como aquela, a roçar o vexatório.
Passadas agora que entretanto foram várias dezenas de anos – eu teria na altura os meus treze ou catorze -, recordo-me bem de mim, especado no meio da vereda solitária e já sombria, à espera que um gajo qualquer que eu nem sequer conhecia - era incrível - ali ao pé de mim, animalescamente, sem aparentar qualquer espécie de pudor ou de constrangimento pela minha presença, se «aliviasse», dando sonoros peidos de mistura com profundos suspiros, urros e gemidos. E eu a gramar aquilo… Tal situação é para mim ainda hoje difícil de entender: como é que foi possível ter-se passado comigo - que eu, elemento destacado da pior reguilagem da «Quinta» e da malta mais «chungosa» das barracas, tivesse aguentado tal situação, quase uma afronta, sem que ao menos lhe tivesse dado um pontapé nos cornos ou lhe enfiasse a cabeça na merda? E o cabrão ali –nas calmas, aos peidos, quase a cagar-me em cima, como se eu fosse irmão dele, ou seja: como se eu fosse também filho da grande puta que o pariu…
E o que ainda hoje mais me espanta quando penso nisso é que enquanto esperava – e apesar do «desconforto» e do ridículo da situação – em nenhum momento me passou pela cabeça fazer-lhe mal ou ir-me embora, abandoná-lo.
Pelo contrário, não só aguentei a pé firme como me recordo de, a certa altura, ter sentido não sei o quê dentro de mim - senti pena dele, e senti-me culpado, não sei porquê. Apeteceu-me dizer-lhe qualquer coisa, abaná-lo, fazer-lhe uma festa na cabeça, dar-lhe um murro, dizer-lhe que não achava justo o que lhe faziam - o que estava a acontecer -, obrigando-o a mostrar a um desconhecido os aspectos mais nojentos da sua intimidade… Senti vergonha sem saber de quê, talvez dele e de mim, talvez de andar a estudar e a carregar a pasta com meia dúzia de livros e cadernos, enquanto ele, porque não o mandaram à escola, estava condenado a ser tratado toda a vida como se fosse um animal. Não era justo.
… Rápido, apertando as calças com um baraço depois de se ter «limpado» a duas ou três pedras soltas, veio novamente a mim. Ajudei-o mais uma vez a carregar o pesado cesto e partiu rápido à minha frente, ao seu destino, murmurando quase em surdina: « - Deus lhe pague…»
De maneira inesperada, senti-me intimamente perturbado, confuso, talvez tocado pela humildade do agradecimento e pela sinceridade da prece do rapaz, com uma necessidade enorme de lhe agradecer, de o ver melhor, de o abraçar, sei lá… desatei a correr doidamente atrás dele, «quinta» abaixo, até lá ao fundo onde o caminho da Azinhaga terminava… mas entretanto o rapaz tinha desaparecido lá onde começava o labirinto das barracas… E não tornei a vê-lo mais.
Esquecido o episódio, segui depois a minha vida e o rapaz terá seguido a dele. Cada um com o cabaz da sua própria vida sobre os ombros.
Pela minha parte, vou continuar a carregar o meu enquanto puder, sempre na esperança de que, numa qualquer azinhaga, ao anoitecer, Deus, ouvindo finalmente a prece do marçano, se amercie de mim e me recompense da ajuda que lhe dei, permitindo que a morte venha também ajudar-me a tirar finalmente de sobre os meus ombros o fardo que foi a minha vida. E que o meu corpo já liberto dela se alivie também, desfazendo-se em merda - essência da própria natureza humana - quando a alma finalmente o abandona. 
02 dezembro 2004
  Prenda de aniversário Não seria talvez ainda meia noite. Sentados alguns, em cepos, à volta da fogueira acesa no chão da adega, e deambulando outros, de copo na mão, petiscando umas iguarias da doçaria das Beiras: filhós, coscorões, arroz doce, tigelada, à mistura com lascas de presunto e de enchidos fumados, fatias de lombo de porco assado… éramos, talvez, dez ou doze os que, à conversa, íamos assim comemorando o aniversário do dono da casa, o homem que, desde há dezenas de anos, era o único médico do Concelho com 15.000 habitantes, perdidos por catorze freguesias entre as faldas da Serra de Estrela e a Serra da Lousã - e se chamava Luís Barateiro.
Do grupo, fazia parte um outro médico, ainda muito novo, o Dr. Afonso que, entretanto, tinha sido nomeado médico do segundo “Partido” do Concelho e aguardava a tomada de posse para iniciar o exercício de funções.
Era uma típica noite de Inverno beirão: negra, gelada e de temporal desfeito.
A certa altura, inesperadamente - dado o já adiantado da hora -, ouviu-se lá fora, por entre o cair da chuva grossa, o som cavo de patadas de besta pisando o empedrado do logradouro da casa. De seguida, alguém bateu à porta com força e um de nós foi abrir.
Era um homem alto: trazia vestido um capote encharcado e na cabeça um chapéu muito velho, já sem cor e também ensopado. Pele tisnada pelo sol e barba negra, por fazer: era um serrano - via-se - habituado ao trabalho violento do campo e ao apascentar do gado. Via-se, também, estar preocupado.
Saudando, enquanto tirava e sacudia o chapéu, dirigiu-se ao Dr. Barateiro, a quem logo, directo e sem mais conversa, disse: Senhor Doutor: Como sabe a minha mulher morreu; o meu genro está na França; e a minha filha, sozinha, não consegue parir.
O médico não lhe respondeu nem lhe perguntou nada. Saiu de imediato para os fundos da casa e voltou quase a seguir com os safões e o gibão já vestidos e a maleta na mão. Atrás dele um empregado vinha trazendo, à rédea, já aparelhadas, duas cavalgaduras.
O Dr. Barateiro dirigiu-se então ao homem e disse: “ vamos lá”, e depois ao colega mais novo: “Se quiser, venha daí”. E, sem esperar resposta e sem se despedir de ninguém, rápido, montou, e pôs-se a caminho a trote largo. Os outros dois montaram também rapidamente e abalaram atrás dele.
Daí a pouco, já tinha deixado de se ouvir o tropel das cavalgaduras dirigindo-se para a serra que iam atravessar, noite dentro, a corta-mato, em direcção ao destino, distante da sede do Concelho 20 quilómetros ou talvez mais.

Contava, mais tarde, o Dr. Afonso, em ar de brincadeira, que o casebre do cabreiro era um curral solitário numa encosta da serra e de acesso difícil, onde, deitada no chão sobre um braçado de palha, junta com os animais, a filha, já exausta, enregelada, meia morta, aguardava havia horas o socorro que o pai, umas vezes em cima, outras ao lado da mula, noite dentro, tinha ido procurar à sede do Concelho.
E acrescentava, bem disposto, que, depois do trabalho feito, tratada a filha e nascido o neto, e dadas as necessárias instruções, perguntou o serrano ao Dr. Barateiro quanto é que lhes devia, ao que o médico, que os conhecia bem a todos - na quase certeza de que o montanhês pouco ou nada lhe poderia pagar - respondeu, meio sério, meio jocoso: são 500$00… honorários que, mesmo em condições normais, seriam, ao tempo e para o nível de vida daquelas gentes e sobretudo para o nível miserável de honorários costumeiro do Dr. Barateiro - às vezes zero - manifestamente exorbitantes.
O homem nem pestanejou e respondeu, serenamente: um neto por 500$00 e um dia de anos passado na serra numa noite de Inverno, não me parece caro. E metendo a mão na bolsa que trazia presa ao cinto, tirou de dentro dela - restos dos tempos áureos do volfrâmio - uma nota de 500$00 que entregou ao médico que, pura e simplesmente, a meteu ao bolso, sem dizer nada.
Já cá fora e, antes de iniciar o regresso a casa, o Dr. Barateiro deu ao colega mais novo a nota de 500$00, dizendo-lhe que era a prenda de anos que o serrano lhe tinha dado e que ele, por sua vez, lhe oferecia como prenda de baptismo nas funções de responsável pelo 2º Partido Médico do concelho.
E foi assim que terminou (já quase de manhã com o sol a nascer, quase de par com o nascimento duma nova criatura) a comemoração do aniversário do médico mais antigo… e começou, ao mesmo tempo, o primeiro dia de trabalho do médico novo (e já na área do seu Partido) ainda antes de ter tomado posse oficial do seu lugar.
Ao outro dia, à tarde, depois de sair da Câmara, fui-me de visita ao Dr. Barateiro para um bocado da conversa da praxe. Não o encontrei. Disseram-me que tinha ido à serra com o dr. Afonso ver como estava a rapariga que, entretanto, tinha ficado sob a vigilância do barbeiro e a companhia e cuidados duma vizinha já entrada na idade.

Este post é a forma de prestar a minha homenagem e o meu respeito à memória desses dois grandes médicos da serra, da mesma Escola e da mesma fibra e qualidade, e que marcaram uma época e uma região. Com semelhante formação e qualidades de carácter, foram ambos activos oposicionistas ao regime então vigente: o Dr. Vale foi o que toda a gente conhece, e o Dr. Barateiro, tanto quanto sei, esteve envolvido no atentado do Luso para liquidar o Salazar…
Como nota final, embora talvez um tanto a despropósito e deslocada, não resisto a acrescentar que, como médicos, nunca ouvi que qualquer deles se tivesse queixado alguma vez de excesso de trabalho, de não pagamento de horas extraordinárias em atraso ou que tivessem entrado em greves self-service contra os doentes pobres… Como não ouvi nunca que tivessem feito viagens por conta dos laboratórios farmacêuticos, como não ouvi de atestados falsos que tivessem passado, nem de outros comportamentos vergonhosos que são hoje, infelizmente, do dia a dia.

Outros tempos virão – vêm sempre - embora seja da natureza humana instalada pensar que não. Mas virão. É fatal: talvez um outro 25 de Abril, outro 28 de Maio ou outra merda semelhante - e voltaremos a ver, como eu vi, autênticos bandalhos a quem alcunham de médicos, cobardes, filhos da puta do pior, a cagarem-se outra vez pelas pernas abaixo, de cabeça perdida sem saber o que fazer, mas aos quais, passada a salvo a borrasca, a lição não serviu... Aliás julgo que nunca vão aprender…
Sendo que, julgo ser também certo, os médicos da faixa dos Fernando Vale, dos Tomás Barateiro, dos Miller Guerra, dos Lobo Antunes, Pai, dos Bissaya, dos Gentil Martins, dos Elísio de Moura e tantos outros, estão a desaparecer: é a hora dos Farmacêuticos, dos Agentes de promoção de vendas dos laboratórios que lhes lêem e explicam, nos consultórios, os folhetos de “propaganda dos produtos”; é a hora das Enfermeiras doutoras que preenchem papéis e fazem mapas mas que não sabem picar uma veia ou tratar uma úlcera do pé dum diabético, quanto mais despejar um penico ou fazer uma cama sem levantar o doente… é o mundo novo onde acabará, talvez, lugar para feridos e doentes, lugar para mortos inocentes e crianças mutiladas pelas lucrativas minas anti-pessoais, que continuam a ser semeadas pela grandes potências chefiadas pelos E.U.A. para libertar os povos oprimidos.

Expresso aqui, ao Dr. Fernando (filho), a par do desgosto, o meu grande respeito pelo Dr. Fernando Vale.
Ao Dr. Barateiro que, dentro de mim, continua vivo, um até breve, com um apertado abraço de amizade que a morte não será nunca capaz de destruir. 
salvadorprata@netcabo.pt

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