Confissão, seguida de contrição
Em Novembro do ano findo, ao tomar conhecimento de que o Dr. Prado Coelho e D. José Policarpo iam iniciar uma
troca de cartas debatendo o mote «os homens foram feitos para se entenderem», escrevi, e guardei para mim, a nota comentário que se segue:
Sua Eminência, enquanto o não foi, mostrou-se sempre um homem excepcionalmente inteligente, ponderado e sabedor - o que não quer dizer que depois de o ser tenha deixado de ser o que já era antes. Só que me quer parecer - e sem que necessariamente tal seja verdade – que, desde então, Sua Eminência passou a ter mais cautela nas falas - talvez até dizendo menos, embora falando mais.
Por isso que, indo ele falar em duas ou três semanas seguidas, aos domingos, receio bem que talvez venha a dizer pouco, muito pouco, ou pouco mais, o que seria uma pena para alguém que, se fosse prelado de uma nação à sua altura, poderia ser, sem favor, o futuro Cardeal de todos os outros Cardeais.
Não vou, por nada, deixar de os ler. É que com dois fora de série, como D. Policarpo e o Dr. Prado Coelho, sempre se aprende alguma coisa.
E se eu - dada a minha idade - já nada tenho a ganhar, também nada perco em aprender até morrer - como diz o ditado - com a vantagem de que, ouvindo o Cardeal, vou com certeza aprender algo mais sobre o Divino e o Pecado (o que a um fariseu como eu só traz vantagem); além do que - e para além do mais - sempre me distrai.
E quanto ao Prado Coelho, vai permitir-me com certeza morrer mais culto e mais bem informado e talvez até a saber pontuar um texto, coisa de que nunca fui capaz, o que de futuro - quem sabe? - talvez ainda me possa ajudar a vencer na vida…
De qualquer modo, e o quer que seja que venha a acontecer, estou na certeza antecipada de que, no final do debate, numa coisa pelo menos os dois concordarão (e será talvez a única, embora nem ambos sejam crentes): a de que
o futuro a Deus pertence... E quanto ao
presente, prevejo que quando, na altura própria, forem perguntados, a resposta dos dois a registar pelo escrivão celeste, será certamente igual: - “
aos costumes disse nada”. E cada um ficará na sua certamente, e um deles, pelo menos, na Graça do Senhor. Se acaso o Senhor lhes achar alguma graça, que a mim, seguramente, nem o Senhor - não obstante a Sua infinita bondade - nem eles me vão achar graça nenhuma. De certeza.
Contrição
Hoje na TV tentei seguir um debate em que intervieram o Pedro Lomba, o Pedro Magalhães e José António Saraiva. Moderadora, Maria João Avillez.
Foi interessante, vivo - diria mesmo apaixonante, sobretudo pelas inúmeras hipóteses propostas para sairmos do atoleiro em que nos encontramos…
Lamentavelmente, entretanto – talvez porque um destes dias dei um trambolhão de todo o tamanho ao descer as escadas da Apolo 70 -, não resisti ao ritmo («alucinante») do debate e sobretudo à originalidade dos participantes – e adormeci. E sonhei. Sonhei que alguma vez, sem saber quando, tinha pisado bosta e quando acordei estava a tentar limpar a sola do sapato, e pensei: Será que os nossos melhores jovens também acreditam que os homens foram feitos para se entenderem? Fui lavar os dentes; e de seguida, para lavar a alma, fui reler as cartas de D José Policarpo e do Dr. Prado Coelho. Agradeci a Deus a graça de me permitir voltar a lê-las (pensando no mote do debate): as de D. Policarpo como se fora um agnóstico; e as do Dr. Prado Coelho, como quem lê a Bíblia ou reza um Padre Nosso. Depois adormeci. Profundamente.
Mensagem
De Buba Para Bush
Ao reconheceres estatuto de prisioneiro de guerra ao Saddam reconheceste, implicitamente, que a única maneira de acabar com o terrorismo no Iraque era negociar com as Forças Armadas de que ele era, dizes tu agora (com imensa piada e uma imensa falta de vergonha), o comandante supremo.
De qualquer modo, se, com o golpe de rins, conseguires uma paz negociada que seja sancionada pela ONU, tens todos os teus problemas resolvidos. Quero eu dizer que se, de facto, conseguires ser mais inteligente do que tens sido até aqui e te aliares novamente ao Saddam (que como sócio da Casa Branca já mostrou ser capaz - como tu - de matar a sangue frio seja quem for), és capaz de te safar... com a vantagem de poder ser o teu melhor intermediário junto de Ben Laden, outro da mesma estirpe e velho amigo da família.
Mas, para que tudo corra bem, tens que os deixar resolver sozinhos os problemas deles e, sobretudo, não deixes que alguém pense que estás contra Alá. Os problemas do Alá são lá com eles. O teu deus é o dinheiro e a tua guerra é o petróleo e controlar o mundo inteiro a partir da Lua…
Continua a falar com o Saddam e com os abutres ingleses - que na rapina são mestres consagrados -, convoca os outros três, dá -lhes umas pequenas quotas na Sociedade e está feito, livras-te de chatices: mandas a tropa para casa, ganhas as eleições e, depois, estabilizas posições - que bem precisas –, que as nuvens, a Oriente, começam a ficar cada vez mais negras; e, se não abres o guarda-chuva a tempo, arriscas-te a apanhar uma banhada. Vai por mim.
Sabes, estúpido, porque é que te estou a dizer isto? Adivinha.
O engraxador
Estava lá sempre. Sentado na banqueta, pano nas mãos, curvado sobre o sapato do freguês, concentrado e absorto, como se nada no mundo, nem mesmo o estoirar duma bomba lançada por um terrorista, fosse capaz de fazê-lo levantar a cabeça.
Mas não era verdade: qualquer pequeno movimento ou o mínimo ruído, para nós inaudível, que viesse da caixa de cartão ao lado, onde dormia o cão, coberto por uma manta velha, esfarrapada, o fazia agitar-se, aconchegando-lhe a manta ou fazendo-lhe uma festa.
Atravessei a rua, levando o Buba pela trela.
Dois passos adiante, parei e perguntei: o cachorro?
Já há tempos que eu notava o andar do cão inseguro, hesitante - como o meu – e pensava cá para comigo: qualquer dia vamos os dois à vida. Era fatal. Só não sabia qual dois ia primeiro… Tínhamos mais ou menos a mesma idade: ele tinha 17 e eu 81 já feitos…
- O cachorro?
Curvado, como de costume, sobre o sapato do freguês, levantou, devagar, os olhos já velhos e gastos, talvez com mais de 70 anos – havia neles, pareceu-me, qualquer coisa de estranho, não, não era tristeza, era diferente: mais forte, mais fundo, amargura... murmurou: - Morreu esta noite.
O que é que este gajo vai fazer agora?, perguntei a mim mesmo. A quem é que ele vai aconchegar a manta velha, esburacada e fazer festas, como se fosse um filho?
Continuei parado, olhando em frente para a banca dos jornais; não disse nada. Não fui capaz… Eu sabia que o cão era a única família, talvez até o único amigo sincero que o homem tinha tido na vida.
O filme das carícias e dos cuidados maternais do velho correu-me no ecrã da alma. Vacilei - estou mais frágil - talvez por ser também já muito velho e estar também já próximo do fim.
Não tive coragem de voltar a olhar o homem. Vim-me embora. Devagar, talvez mais devagar que de costume: o andar inseguro, hesitante, tal como o cachorro nas vésperas de morrer. E uma sensação estranha: como se, embora não sendo nada comigo, tivesse - com o cão - morrido também uma parte de mim.
A grande cowboyada
Depois de muitos tiros, muitos mortos e muitas correrias de «cavalos», tudo «nos conformes», como é habitual em filmes deste género, prenderam, finalmente, o que é para uns o «herói» e o «mau da fita» para os seus perseguidores. De original, o filme só tem que alguns «xerifes» se juntaram, na perseguição, ao chefe dos bandidos. E entretanto, caçado já o «mauzão» como um coelho na toca, reuniram-se algures na pradaria, em local secreto, e estão a resolver se devem julgá-lo sumariamente e pendurá-lo numa árvore sem o levar a tribunal (para não dizer o que sabe) ou se devem mantê-lo indefinidamente a pão e água e obrigá-lo, à porrada, a dizer onde guardou o tesouro. E o resto das armas assassinas que, em tempos, lhe entregaram.
(1) Se era certo que as imagens do Saddam tinham qualquer coisa de chocante e repulsivo, não era menos certo que o olhar resignado do homem, vencido e humilhado, quase sugeria (guardado o exagero) o olhar de Cristo na cruz a ser martirizado, ou o olhar de um negro, na América, atirado ao chão e - só por ser negro - a ser espancado por polícias.
O que, com tais imagens, parece ter-se pretendido terá sido provar a derrota e a humilhação do ditador, mas o que talvez possa vir, mais tarde, a ser provado é que terão sido, afinal, tão só, o que o Saddam quis que fosse visto pelo mundo inteiro e em especial pelos iraquianos: que ele estava vivo e que não tinha fugido. O que - a ser assim - seria, afinal, prova de coragem, astúcia e, sobretudo, de capacidade de embuste fora do vulgar.
Estamos, é certo, no domínio das hipóteses e, se é verdade que esta pode ser aparentemente fantasista, também é verdade que algo parece estar errado em tudo isto: o Saddam das imagens que agora nos mostraram não é o mesmo das fotografias que inundavam o Iraque quando ele era o seu senhor incontestado e todo poderoso: o aspecto, como que «fabricado», do visual de agora - a barba hirsuta e o cabelo em desalinho - não é, mesmo assim, o de um ditador vencido, resignado, mas, ao que nos pareceu, o de um homem tranquilo, de olhar lúcido e determinado, a deixar que possa supor-se ter ele próprio mandado denunciar-se - para ser «apanhado»- e com isso criar sérios problemas ao captor…cujos crimes poderia denunciar em julgamento - porque bem os conhece e desde há muito como seu antigo sócio e confidente.
E talvez que a tese não seja de rejeitar liminarmente porque é verdade que Saddam já revelou serem grandes as suas qualidades de comando e de estratega, ao mandar retirar de Bagdad e das frentes de combate, quase instantaneamente, não só a elite das suas forças fiéis - a famosa e temível Guarda Republicana -, como as forças de Polícia, os funcionários públicos e os muitos milhares de homens e mulheres nacionais (e estrangeiros que tinham afluído ao Iraque) e que constituíam as milícias suicidas.
E fez isso (e que tenha podido fazê-lo quase instantaneamente prova que o tinha preparado muito antes) logo que confirmou, na hora, o que antes já previra: que a luta militar não seria possível contra um inimigo poderoso sem escrúpulos, sem moral e sem princípios, capaz de chacinar cidadãos pacíficos de uma cidade aberta, do ar e cobardemente porque de fora do alcance das armas inimigas.
Saddam teria dado a ordem de retirar e destroçar aos efectivos militares, para os utilizar depois, mais tarde, sem uniforme, em acções de desgaste de guerra de guerrilha e de terror. E, bom simulador (e embora sabendo que com isso ia condená-lo a cobrir-se de ridículo), teria dado ordem ao seu ministro da propaganda para que jurasse ao mundo inteiro que, em certa noite, os americanos iriam ser pulverizados, sugerindo desse modo que iriam ser utilizadas as célebres armas de destruição maciça.
E Saddam terá feito isso porque terá concluído - como já previra antes - que era a única maneira de fazer cessar a chacina da população civil iraquiana, cuja vida os «libertadores» comprovaram desprezar.
E enquanto, em terra, os «aliados» aguardavam o pior, as tropas de Saddam retiravam das frentes de combate e dissolviam-se, desfardadas, entre a população, enquanto, e entretanto, mantinham a bom recato e bem escondidas as armas de destruição massiva, inutilizáveis de momento, dada a presença de civis - velhos, crianças e doentes - na área de confronto.
Placidamente - embora tendo armas e munições à mão - o que a televisão mostrou agora - como ilustração do respeito anglo-americano pelos direitos humanos - foi um Presidente de um país (ocupado ilegalmente porque sem o aval da ONU) a ser examinado - não como prisioneiro de guerra e chefe de Estado inimigo, mas como um cão vadio - e supostamente piolhoso - apanhado na rua.
Mostrando-o ao mundo, sujo e andrajoso, como se fosse um vagabundo, ninguém - a menos que seja um Bush, um Blair ou um Durão - pode deixar de perceber que alguma coisa não está bem. E talvez tenha sido isso precisamente que ele quis que o mundo testemunhasse - e para além disso testemunhasse também a sua coragem e firmeza, porque, tendo podido fugir (o convite foi-lhe feito publicamente por Bush antes de iniciar a invasão), preferiu ficar no seu país, sujeito a ser morto (ou preso e metido num Guantanamo qualquer e ser torturado), escondido, planeando e talvez até dirigindo, no terreno, acções terroristas de retaliação e vingança. E a mala, com maços - ainda cintados - de dinheiro - que terá colocado junto de si (inculcando ser o que os americanos teriam pago ao «denunciante» pela sua captura) seria talvez a prova que quereria mostrar ao mundo que os iraquianos não se vendem por dinheiro.
Saddam terá dito, ao ser preso, que queria negociar. Já antes mandara o Said dizê-lo aos americanos. Cabe, agora, aguardar o que se vai seguir. E, se não houver acordo, é possível que os homens de Saddam (ou de Bin Laden) façam mesmo deflagrar, se existirem, armas de destruição massiva quando e onde melhor entenderem.
Quanto a saber se tais armas existem, os americanos devem já saber a verdade, cabendo-lhes agora decidir (frente à renúncia ao poder assumida por Saddam) pela retirada militar, ajuda humanitária ao povo do Iraque e a reserva para si (e para os sócios no negócio) de uns quantos poços de petróleo. A decisão acertada terá, necessariamente, de ser em tal sentido pela razão simples de que é sentido único, e qualquer outro será caminho sem retorno em direcção ao fim do que resta da Civilização Ocidental. E, entretanto, a chamada informação global já tem prontas as máquinas para filmar o Saddam vivo ou morto, conforme o vier a decidir Bush, o chefe louco da polícia política do mundo.
(2) Um pormenor inquietante e intolerável é não se saber onde está o Saddam, que, embora criminoso confesso e sem perdão, devia ter sido entregue à guarda da ONU e não ficar à guarda dos torcionários do Governo americano. E, sobretudo, tal não deveria ter sido tolerado sem o protesto enérgico do Kofi Annan, que é hoje o único Provedor de Justiça e da Moral internacional, dado que o Papa, a quem competia também tentar impô-la, o não faz, balbuciando, em vez disso, umas vagas, piedosas e inócuas orações e ladaínhas.
(3) O medo e não as armas vencerão o terrorismo. O terrorismo, na forma actual, terá tido a sua génese nos bombardeamentos aéreos de Londres assumindo a sua expressão mais hedionda e repugnante quando Churchil, em 13 e 14 de Fevereiro de 1945, a poucas semanas do fim da Guerra, mandou aviões ingleses e americanos lançar toneladas de bombas incendiárias sobre Dresden, uma cidade universitária alemã, sem defesa anti-aérea, e sem objectivos militares, com cerca de 600.000 habitantes e mais de 600.000 refugiados de guerra, arrasando e pondo em chamas a cidade e matando entre 150 000 e 200.000 pessoas, sobretudo mulheres e crianças, como acto (cobarde, sórdido e vergonhoso) de mera represália e de vingança.
Esta linha de demência criminosa e assassina veio a culminar em Hiroxima, onde volta a ser utilizado o terror militar sobre civis como meio de forçar à rendição o exército japonês..
Mais tarde, em 2002 - na mesma linha de terror prosseguida no Vietname - e ao arrepio da ONU, aconteceu Bagdad... e Saddam reagiu, mandando desfardar os seus exércitos e, sem os desmobilizar, disseminou-os entre as forças inimigas, utilizando o seu próprio terrorismo militarizado contra militares e civis, indiscriminadamente, criando o caos e tornando praticamente inútil o poderio militar do inimigo.
Julga-se, por isso, que Saddam ficará na História, não como mais um vulgar tirano e monstruoso assassino, mas como o autor dum novo tipo de guerra (esboçado por Ho-Chi-Min), o terrorismo civil, militarmente organizado, como resposta ao terrorismo militar do agressor. E criando talvez dessa maneira vil e criminosa (tão criminosa e vil como a do agressor) a hipótese de um novo equilíbrio - como aconteceu, primeiro, com o medo do poder atómico e depois com o Vietname - permitindo que a paz seja conseguida por imposição dos povos, incapazes de suportar, indefinidamente, os efeitos terríveis do embate entre os diversos terrorismos. E evitando assim, talvez, um outro terrorismo ainda mais radical: o da confrontação atómica regional e internacionalizada.
Nota final
Mensagem De: Buba
Para Saddam
Assunto: Ubi est Saddam?
Como tens passado? Continuas porco, seboso, cabelo desgrenhado, com piolhos e barba por fazer? Ou já te «fizeram a barba» e «amaciaram o pêlo»? Há quem diga, por aqui, que te «limparam o sebo» para não ires a julgamento dizer algumas verdades: defendendo outros, que estão a «tratar-te da saúde», para depois te mostrar ao mundo, atoleimado, arrependido, a dar vivas ao Bush, o salvador do teu povo, tão mal agradecido. Se estiveres ainda vivo, em teu juízo perfeito e não drogado, telefona-me se puderes. Se já te não for possível, pede ao São Pedro e manda-me um email do outro mundo. Buba