O nome
O Eduardo referiu-se ontem no
Bloguices - pareceu-me que com uma leve ponta de desconforto, senão de velada inquietação - ao facto de o Buba ter estado desta vez tanto tempo sem dizer nada. E no entanto não ocorreu nada de especial. Depois que nasceu, no dia 27 de Março, o meu bisneto Pedro, fiquei prostrado. Se toda a gente sabe como é cansativo para qualquer mãe ter um filho, mesmo quando é nova, o que dizer do esforço dum idoso que tem um bisneto - o terceiro - quase aos 82 anos?… com a agravante de não saber sequer se as coisas ficam por aqui. Eduardo, já nos conhecemos (clicas tu, clico eu…) não sei ao certo há quanto tempo, mas há já talvez dois ou três meses - uma eternidade -, confiava em ti como amigo fixe mas, francamente, não esperava que notasses e te estivesse a intrigar a minha falta de notícias! De qualquer maneira, obrigado por mais esta prova de amizade.
Entretanto, aproveito para te dizer, e - não fazendo de ti meu criado - peço-te que transmitas aos outros amigos do Buba, que estive a pensar e resolvi que, de futuro, é aos meus bisnetos que de preferência me vou dirigir. E para começar resolvi dar ao Pedro as boas vindas, em nome da família, escrevendo para ele o texto que vais ler.
Espero que se o Pedro, o Dinis e a Rita, um dia, daqui a uns anos, tiverem tempo e pachorra para ler o que, enquanto puder, irei escrevendo para eles, fiquem com uma ideia mais aproximada de quem era o bisavô materno, que não gostava do nome que o seu avô e seu padrinho lhe deu. Porque lhe parecia que, quando alguém o chamava Salvador, estava a invocar em vão (como o avô dele, a quem morreu um filho) o nome de Jesus.
Pedro, julgo que não terá sido o sentido apostólico dos teus pais que os terá levado a chamar-te Pedro. De qualquer maneira, felicito-te pela sorte que tiveste - apesar da suspeita que vai acompanhar-te toda a vida - ao chamarem-te Pedro, nome de santo e nome igual ao do teu outro bisavô materno que eu conheci e posso garantir-te que foi um homem íntegro, de inteligência superior e de uma modéstia a roçar o obsceno. Anoto isto também, para que, a seu tempo, possas ler e perceber melhor a sorte que tiveste, comparada com a minha…
Vê só: tal como tu, sem ser consultado, o meu avô e meu padrinho decidiu que me chamasse Salvador. Nada menos. Julgo que a ideia terá vindo, antes do mais, porque o meu avô era um alcoólico, bêbado crónico, inveterado. Terá sido aí que tudo começou. Lembro-me de - já um homenzinho, com os meus quatro ou cinco anos, cheio de vergonha - o ver na taberna a beber, e a vir cá fora, volta e meia, vomitar. A imagem marcou-me para sempre e ainda hoje associo as duas coisas - o vómito e o nome de Jesus – e de tal modo que não sei se não terá sido numa dessas ocasiões que terá vomitado, conjuntamente com o vinho, o nome altamente suspeito que me deu.
Talvez não fosse, mas na minha mente o meu nome ficou para sempre associado à imagem repugnante e violenta do meu avô e meu padrinho a vomitar… «Sou teu avô e teu padrinho», dizia-me o cabrão, aparentemente orgulhoso, feliz. E, na verdade, não era bem assim. Disseram-me mais tarde que Salvador tinha sido o nome de um filho que adorava e lhe tinha morrido ainda criança. Minha avó, a quem ele amava e amou sempre perdidamente até morrer, odiava-o e fazia pouco dele. Ele bebia, tocava guitarra e cantava os próprios versos e as músicas que fazia. Era um poeta. Um homem só - percebi isso mais tarde -, um desgraçado.
Na rua da Graça, em frente ao Royal Cine, onde o passeio era muito estreito, caminhava um dia, ao fim da tarde, com passo inseguro, meio bêbado como sempre, o meu avô. Um eléctrico apanhou-o por trás, projectou-o contra a parede e trucidou-o.
Ao meu nome ficou, para sempre, associada a tragédia que o matou, amortalhando a paixão de um homem bom por uma mulher malvada e o seu amor inconsolável por um filho que, ao morrer, o deixou só.
Para mim, e para sempre, ficou-me como um ferrete o nome que o meu avô me deu, talvez para poder ouvi-lo, ao chamar por mim, como se chamasse pelo filho. «Sou teu avô e teu padrinho», dizia-me ele, como se gozasse o prazer de vingar-se do destino. Nunca me fez uma festa, um carinho, nem nunca me disse que gostava de mim. Minha avó também não. Mas essa era uma mulher perversa, diabólica, malvada. Recordo-me bem dela: um dia, foi a casa dos meus pais. Eu estava gravemente doente, «desenganado dos médicos». Minha avó apareceu, sentou-se numa cadeira à cabeceira, e bem disposta, sorridente, explicou à minha mãe que tinha ido lá levar-me uma camisola interior de boa qualidade - tinha-lhe custado vinte e cinco tostões, disse ela - porque não queria ficar com o remorso de, morrendo eu de um momento para o outro, nunca me ter dado nada. A camisola era para a minha mãe me vestir quando eu morresse - disse ela à minha frente, talvez para eu lhe agradecer… quando a vestisse, depois de morto. Como sobrevivi, nunca cheguei a vesti-la. E agora, quando chegar a altura, certamente não me serve. Aliás, perdi-a de vista e à minha avô também. Quanto à camisola, foi dinheiro perdido. Quanto à minha avó, não se perdeu nada.
Em resumo, Pedro, pelo meu lado a «linhagem» é em parte o que te conto e - porque se me aperta a garganta sempre que penso nisso - nunca o contei a ninguém. Conto-te a ti porque, quando tu e os teus irmãos lerem e entenderem o que escrevi sobre as minhas raízes, terá passado muito tempo e o que lerem já não será vergonha para o teu bisavô Salvador. Que odiou sempre o nome que lhe deu um homem só, infeliz, que, depois de perder o amor da mulher e perder o filho, se sentiu também perdido e deu ao neto o nome do próprio filho para, chamando por ele, ter a ilusão, toldado pelo álcool, de que o filho ia talvez responder-lhe. Ou talvez na esperança, quem sabe, de que o filho não tivesse morrido e ouvindo o pai desesperado, a chamar por si chamando o neto, se apiedasse dele e ressuscitasse. Como Jesus.