O Football, o Texas Jack e a Fome da Dorinda
Amanhã é domingo, dia do Senhor, vamos ter football. Vamos novamente vibrar de emoção, agitar as bandeiras, gritar de alegria ou de raiva, de desespero e de desilusão. Estamos na mão de duas Senhoras: a de Fátima e a de Caravaggio. Vamos todos rezar e pedir-lhes que ajudem os nossos rapazes a conquistar o título de campeões, que é esse, de momento, o objectivo de nós todos.
E, entretanto, aproveito para mais uma vez pedir a todos que, qualquer que seja o resultado e ainda que não conquistemos o título de
campeões da Europa em football, não percamos a chance de jogar pela certa para a conquista do título de
campeões da Europa contra a fome. E, a propósito da fome, vou contar-vos um episódio passado comigo quando, ainda muito miúdo e embora sem nunca a ter passado, já tinha visto muita gente passar fome.
O Football, o Texas Jack e a Fome da Dorinda. Era aos domingos à tarde, na minha escola, a “Aurora Social”. Enquanto, cá em baixo onde funcionava o bar e no salão anexo, os pares dançavam ao som da música dum quarteto ranhoso, lá em cima, na sala da aula, arrumadas as carteiras a um lado, um gajo qualquer ensinava-nos também a nós, os miúdos da Escola, os primeiros passos de dança.
Eu abominava ser obrigado a participar no acto, para mim sem sentido, de dar a mão a alguém e agarrá-la pela cintura – a que propósito se muitas vezes nem sequer se conheciam -, como eu via fazer cá em baixo, no salão, aos mais crescidos, e andar depois às voltas, ao compasso da música, à toa, sem destino…
A dança era para mim uma actividade com qualquer coisa de vagamente obsceno em que, segundo deduzi, os homens - os “cavalheiros” - esfregavam “o coiso” na “crica” das raparigas… era o que eu ouvia dizer, cá em baixo, aos gajos, a comentar e a rir-se muito, os filhos da puta.
Talvez por isso nunca me tenha agradado a dança - o “esfreganço”, como eles lhe chamavam - que era, quanto a mim, do género génito-recreativa, só que talvez um pouco mais disfarçada.
Por outro lado, no meu caso, o problema da dança tinha outro aspecto mais grave: é que, para todos nós - e para mim também -, a “colega” mais bonita da Escola era a Joana, e ela sabia que, tal como os outros, eu também gostava dela. E também sabia que eu detestava vê-la agarrada fosse por quem fosse… e, talvez por saber isso, deixava-se agarrar e ia para o “esfreganço” com outros só para me fazer sofrer.
Por isso, quando ao domingo à tarde começava a aula de dança e era a vez de os “cavalheiros” irem junto das “damas” convidá-las a dançar, era para mim “disgusting” ver toda aquela canzoada ainda miúda - mas já, precocemente, animalesca - a lançar-se, quase em correria, em direcção à Joana a tentar cada um ser o primeiro a chegar junto dela. E eu, ainda hoje não sei explicar porquê - talvez por despeito, ciúme… sei lá porquê -, não ia. E, enquanto os outros todos se lançavam, em tropel, na mesma direcção, eu ia na direcção oposta, sozinho, convidar a Dorinda, a mais feia de todas as raparigas que havia na Escola: os olhos vermelhos, por vezes remelosos, os cantos da boca com boqueiras, e o cabelo dum louro sujo, sem brilho, a escorrer-lhe em farripas sobre uns olhos pequenos, tristes, de cão sem dono.
A Dorinda era filha de pai incerto - mesmo para a mãe, uma mulher que vivia na “Quinta” e que vendia peixe, sem querer saber daquela filha, já que tinha outros filhos do homem com quem vivia.
Por isso, quando ao fim da manhã, acabada a escola, todos saíam e iam para casa - ainda que “a casa” fossem as barracas - a Dorinda, para comer, ia como alguns outros pôr a lata para o rancho na bicha à porta do Quartel de Sapadores. Ou, se não havia rancho, ia para a Graça pedir esmola, muito embora fosse raro que alguém desse alguma coisa, e não fosse raro que a polícia perseguisse os miúdos que andavam na pedincha.
E era a Dorinda, de quem quase todos se afastavam com uma vaga repulsa, que eu (com a estranheza dos outros) ia sempre “convidar” para dançar…
O meu tio Manuel foi, quando eu era miúdo, o melhor amigo que tive. E, eu, pelos meus oito, nove anos, se havia coisa que gostasse de fazer era ler uma revista de aventuras semanal, o “Texas Jack”, que, quando tinha dinheiro, ia comprar a uma tabacaria na Rua da Graça...
Certo sábado à tarde - como antes já por mais que uma vez acontecera – o meu tio, que sabia das minhas preferências, deu-me os 6 tostões para eu ir comprar a revista. Com o dinheiro na mão, bem apertado para não o perder, corri “Quinta” acima até Sapadores e segui em frente, sempre a correr em direcção à “Marilita”, onde eu sabia que estava pendurada à porta, entre as outras revistas, o “Texas Jack” dos meus sonhos. Mas… porra, que chatice! - quando ia já quase a chegar à porta da tabacaria, vi a Dorinda. E vi que ela, embora se não tivesse mexido, também me tinha visto. Apanhado de surpresa, fiquei como se tivesse levado uma pedrada na cabeça, sem saber o que havia de fazer: se “fazer de conta”, entrar, comprar a revista e ir-me embora à minha vida ou… ou o quê? - merda - o que é que eu havia de fazer? A Dorinda estava sentada, meia encostada à parede, na esquina da Rua da Graça com a da Senhora do Monte. E eu sabia que, nesse dia, não tinha havido rancho em Sapadores. Era mais que certo que a gaja não comia nada há muitas horas. Mentalmente, ia argumentando comigo mesmo: não tenho nada isso, não sou pai dela, puta que a pariu… tinha era que “fazer de conta”: entrar, comprar a revista e ir à minha vida.
Mas dentro da minha cabeça era uma confusão: é que também era muito chato comprar a revista e ir-me embora, sabendo que a gaja ficava ali a “latir” com fome. E voltava a revoltar-me: porra “p’á” gaja e “p’á” puta da mãe dela. Ramelosa! Filha duma “g’anda” puta! Apetecia-me era ir ao pé dela e dar-lhe um murro nos cornos. Era mesmo o que me apetecia… E até o Texas Jack, da capa da revista, parecia que estava a olhar para mim e a gozar... eu já nem podia ver aquele cabrãozão de merda que também só andava a matar índios, que não lhe tinham feito mal nenhum…
Sentei-me, devagar, na pedra da soleira da entrada da tabacaria. Endireitei-me um pouco e olhei mais uma vez para o Texas Jack, ali mesmo, pendurado, quase a tocar-me na cabeça… e tinha a sensação, mesmo sem olhar para lá, que a Dorinda estava a olhar meio de lado, com aqueles olhos dela, sempre vermelhos, infectados, doentes, pregados em mim e que eram como uma corda que me estivesse a amarrar e não me deixasse ir lá dentro comprar a merda da revista.
Continuei ali sentado, não sei por quanto tempo, baralhado… Eu sabia que ela estava à espera de mim, como quando ia buscá-la para dançar. E a merda era que eu por um lado estava danado por ir ficar sem a revista por causa dela e ao mesmo tempo sentia dentro de mim uma espécie de orgulho por ela saber que eu não era capaz de me ir embora e deixá-la ali sozinha, com fome… filha duma puta… E, de repente, não hesitei mais: Que se lixe a revista. Levantei-me, fui em frente e entrei na mercearia do Teixeira. Ela levantou-se e veio atrás de mim… Pus os seis tostões em cima do balcão. O merceeiro conhecia-nos: não foi preciso dizer nada. Fez três pequenos embrulhos. Um deles era oferecido - era de rebuçados -, percebi depois; agarrei neles e dei-os à Dorinda, com vontade de lhe dar com eles no focinho. E saí, sem sequer olhar para ela. Danado.
Virei a esquina e comecei a subir em direcção ao miradouro. Quando cheguei lá em cima, sentei-me a olhar a cidade. Não sei porquê, pareceu-me mais bonita... A Dorinda veio atrás de mim, sentou-se no mesmo banco e, quase a medo, encostou-se a mim (como se eu fosse um irmão que nuca teve ou o pai que nunca soube quem era), a tasquinhar num rebuçado. Deu-me um que comecei também a chupar… sabia a limão. E por ali ficámos, sem falar, ainda um bom bocado.
A certa altura, de través, olhei para ela. E vi pela primeira vez que, afinal, os olhos dela nem eram tão feios assim… do fundo deles vinha qualquer coisa que me fez sentir como que uma lassidão estranha, diferente...
Continuámos calados a olhar a cidade, lá em baixo.
Depois, sem dizer nada, ela levantou-se e foi-se embora. No meu ombro, onde ela tinha estado encostada, senti frio. Em cima do banco, vi depois, tinha deixado ficar os rebuçados.
Anos mais tarde, de regresso a casa, quando vinha do Liceu, via por vezes a Dorinda - agora já com os seus doze ou treze anos, já não andava a pedir: era peixeira. Enquanto eu carregava uma pasta com livros, a Dorinda trazia uma canastra à cabeça. Por vezes, acenava-me de longe, apontando-me às freguesas, talvez a dizer-lhes com orgulho que tinha andado na escola comigo… mas, tímida, como que amedrontada, nunca se aproximou.
Eu, pelo meu lado, com a alma já tão emporcalhada e tão doente como antigamente eram os olhos dela, ia andando e respondendo ao seu tímido aceno com um leve e disfarçado meneio de cabeça, de modo a que os meus colegas não se apercebessem do meu tão reles e desinteressante conhecimento…
Precisamente por isso, por esse vago mal-estar, como que de vergonha, ao passar pela Dorinda sem “coragem” (nem vontade) para lhe falar, terá começado para mim o drama do equívoco de saber realmente que espécie de pessoa eu era, e sobretudo qual era, realmente, a minha classe social: por um lado, estigmatizado pelas vivências indeléveis das púrrias (confrontos à pedrada) com os gajos da Quinta, pelas idas à “Praia” (junto aos esgotos em Xabregas) e pelo chapinhar com eles na “Fossa”, por onde corriam rios de merda a céu aberto… E, depois, sobraçando a pasta dos livros quando vinha do Liceu já com outros amigos, outras preocupações, e, entretanto, sentindo haver dentro de mim algo em comum com os meus amigos da Azinhaga e das barracas, muitos dos quais - porque não puderam ir estudar – a polícia foi prendendo e amontoando nas cadeias: untermenschen, os sem classe que os nossos políticos, filhos-família e outros filhos da puta, costumam visitar, à distância, a ver rastejar nos diversos bairros da lata entre a merda e as seringas, como quem vai ao zoo, quando há eleições.
Das distinção entre as “nuances” das diversas (autênticas e falsificadas) classes sociais e ainda da chamada luta de classes virei falar qualquer dia quando tiver mais vagar. Para terminar por hoje, vamos ao que mais importa.
O Football. A vitória sobre a Holanda deveu-se, sem dúvida nenhuma, às pernas e ao bom trabalho do Figo, e sobretudo às preces que, quando está aflito, vai fazer nos balneários à Senhora de Fátima que - estou seriamente convencido - foi o que nos valeu, porque como foi evidente - até um cego podia ver - o Scolari, a partir do auto-golo, perdeu completamente o controlo do jogo, o que, só por si, deu para perceber que de football o gajo não sabe a ponta dum corno… Se não fossem as pernas do Figo e ter-se agarrado à Senhora no balneário a pedir-lhe muito, e ela ter-lhe feito a vontade, tinha sido uma porra! Esta é a minha opinião, que, feliz ou infelizmente, não coincide com a do inefável e sapientíssimo Professor Marcelo, que considera o Scolari como um líder. O que será verdade; e, se assim for, estão bem um para o outro, devendo, na minha opinião, ser os dois atrelados a uma carroça, lado a lado, e mandá-los ir passear.
Seja como for, amanhã, as cores nacionais inundando o Estádio e a bandeira nacional nas mãos, nas janelas, nos carros, por todo o lado, e nós gritando “Viva Portugal”, vamos todos apoiar os nossos rapazes e incitá-los a vencer o inimigo grego, mostrando à Europa que somos um povo que desde o 1º de Maio de 1974 se não sentia tão unido, muito embora, passados 30 anos, e por culpa de quem nos tem governado, sejamos na Europa o povo que tem o mais baixo nível de vida; em que à mulher o aborto ainda é proibido; em que o próprio Ministro da Saúde e o Presidente da Ordem respectiva dizem que as mulheres não devem cursar medicina, devendo antes ficar em casa a cuidar dos filhos. E também o país que, como “antigamente”, continua a ter, na Europa, a maior percentagem de analfabetos, e em que um em cada três alunos do básico não conclui o secundário, e para combater a situação o governo tem fechado centenas de escolas…
Entretanto, vou já começar a pedir, com muita fé, à Senhora de Fátima que amanhã nos dê a taça de
Campeões da Europa em Football e a seguir a de
Campeões do Mundo Contra a Fome, e depois…
Depois vou escrever ao nosso Presidente e começar a rezar a todos os santinhos a pedir-lhes que, terminada a euforia, e regressados à triste realidade, não se engate tudo à porrada.